Ponte Rio-Niterói
Viaja-se sem pontos de apoio,
só com a bússola invisível
da intuição
Há uma palavra que aprecio, no mais
elevado dos sentidos, da língua portuguesa: madrugada, que me transporta,
irresistivelmente, ao sonho. Madrugada do pensamento. Aquela em que, cheio de
fantasias noturnas, nos lançamos em direção ao infinito.
Se o que busco não está na solidão
do ermo, quem sabe esteja no burburinho das ruas e avenidas? Surge na mente The
Bridge, de Sonny Rollins, uma composição que faz travessia na ponte aérea entre
os universos do dia e da noite. Abre-se um outro mundo, um portal habitado
pelos seres da noite nos subterrâneos daquele universo particular, intimista e místico.
Assim, mesclam-se luzes e sombras na imensa teia de rendas negras. Nada melhor,
portanto, do que ir ao encontro do sonho. Nada, ninguém controla o sonho e
aquilo que o sustenta: os olhos do deserto, dos labirintos e ouvidos se
construindo em abismos, à guisa dos grafites e pixações nos muros e paredes de
prédios, em que se procede através de sucessivos aprofundamentos. Construção
contrapontística feita de sedimentações de músicas urbanas dodecafônicas e
superpostas. Entre a abstração do signo e a concretude da viagem. Emerge das
sombras ou à sombra dessa noite que é a origem de tudo. Em meu itinerário, não
economizo esforços para me encontrar. Viajando. Misturando termos eruditos com
linguagem ordinária numa alquimia de palavras. E perguntando, sobretudo
perguntando.
Como o deserto, as ruas do labirinto
da cidade são os personagens. Tem olhos que nos espiam, mas nós não os vemos,
apenas sentimos suas presenças misteriosas e inatingíveis, a exemplo do
horizonte que se furta ao olhar. Seria a página branca à espera de uma letra
que os redimam. Neles não se encontram respostas, só perguntas. O deserto, a
madrugada e as vias são o começo da vida. Para compreendê-los, o leitor não
precisa de manuais geográficos ou históricos, mas precisa – sem o que, não há
viagem – de instintos poéticos e filosóficos que lhe abrirão as portas de um
mundo primordial e mágico, tanto mais mágico quanto mais infenso a definições e
certezas. Viaja-se sem pontos de apoio, só com a bússola invisível da intuição.
Somos uma letra efêmera que um dia
reverterá à tinta primordial, indiferenciada, de onde saiu. Os homens do
deserto e os seres das altas horas têm uma sabedoria à qual temos de nos
acostumar. Dão a impressão de que quanto mais perdem em objetividade, mais
ganham em alma e profundidade. Em certas horas, sentimos uma nostalgia da
concretude. De proximidade. Uma língua em que o deserto, a madrugada e as vias
não só têm olhos que vigiam deuses invisíveis, mas belas palavras que povoam a
página branca.
A paisagem se abre em terreno árido.
Cortes profundos e abissais permitem que transitemos por céus e mares de areia
e concreto, em belos voos através de muitas madrugadas desertas nas ruas do
labirinto da cidade. De uma leitura lírica e singular com paixão e curiosidade
pelo mistério de desconhecer. Os símbolos e arquétipos funcionam como princípio
que irá possibilitar o mergulho em abismos que seduzem e assustam por sua
grandeza e intangibilidade.
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