Retrato de Murilo Mendes (1951) de Flávio de Carvalho
Hoje completaram-se 38 anos
de seu falecimento
Murilo Mendes, uma das mais
interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta
difícil e, por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade
desconcertante, sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens
curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Wolfgang Amadeus Mozart e
ouvia suas músicas de joelhos, na mais completa ascese mística, não permitindo
que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões. Certa vez, telegrafou para
Adolph Hitler protestando em nome de Mozart contra o bombardeio em Salzburgo.
Sua fixação contemplativa por janelas foi assunto do cronista Rubem Braga. Em
1910, presenciou a passagem do cometa Halley. Sete anos depois, fugiu do
internato para assistir ao brilho de outro cometa: Nijinski, o bailarino. Em
ambos os casos sentiu-se tocado pela poesia.
“Na mais completa liberdade de ação,
sempre mergulhando no âmago das coisas, sua magnífica obra, além de bastante
extensa, compreendendo cerca de doze livros de poemas, três em prosa e vários
inéditos, está exigindo um estudo aprofundado, onde se possa aquilatar com
justiça seus altos méritos, já iniciados pelos ensaístas Haroldo de Campos e
José Guilherme Merquior**, ambos falecidos. Poeta excêntrico, inquieto e perquiridor,
mas muito comentado em absoluto silêncio. Pouco citado e omitido em antologias
e estudos sobre o movimento de 1922, Murilo Mendes, hoje, um poeta que tem uma
obra definida, pessoal, livre de alguns chavões do próprio grupo modernista,
poeta alheio a grupos, sempre trabalhando isoladamente, construiu uma obra
bastante pessoal, enriquecendo-se de um universo linguístico, quanto na
experimentação formal, a cada novo livro publicado.
Murilo deixou-nos uma obra ampla, indo
da sátira aos temas religiosos (era profundamente católico), da irreverência
lírica ao tom apocalíptico e do desassossego surrealista ao verso tenso e
rigoroso. Além de vários livros inéditos; Carta
Geográfica, Espaço Espanhol,
Janelas-Verdes, Retratos-Relâmpagos (2ª série), A Invenção do Finito, Conversa
Portátil, Papiers (texto original em francês) e Ipotesi (texto original em
italiano).
Um poeta fascinante e estranho à
primeira vista, pela liberdade criadora. Sua poesia da fase inicial, fortemente
acentuada pela influência surrealista, manifesta-se de um modo livre,
apropriado à sua própria norma poética. É, sem dúvida, um dos nossos poetas
mais difíceis e irregulares, construindo em sua poesia um mundo vizinho do
onírico, interpenetrante aos planos real e metafísico, consubstanciando a visão
agônica de um mundo decadente, amargurado e sofrido, desunido pela guerra. Sua
poética, altamente simbólica, revela mais do que um modernista, o criador de
uma poesia magistral, espiritualizada, que tenta transmitir a eternidade da
existência pós-morte.” – afirma Gilfrancisco*.
Grafite para Murilo Mendes
Meu
querido mestre Murilo Mendes
Minhas
palavras esculpem o teu corpo
no
azul do afresco do céu alado
do
teu deus, cavaleiro das fontes,
poça
sem fundo./
Olho
por muito tempo o corpo de um poema
Até
perder de vista as janelas dos teus olhos
de
caos/ e sinto separado entre os dentes
da
memória,/
um
filete de primavera de sangue nas gengivas,
das
bocas, nos becos de Minas,
Lavadeiras
sobem ladeiras
Lavadeiras
descem ladeiras
carregam
candeias nas mãos,
Dormem
na penumbra esperando
anjos
vingadores./
Dormem
no outro tempo, dos mortos
da
sobrecasa/
Dormem
no talco preto da terra prisioneira,
das
almas que vagam.
Os
demônios de Juiz de Fora estão soltos
no
discurso de difamação do poeta
Chove
paranoia contra o elogio à loucura,
à
poesia da casa do canário,
que
guardamos aprisionada na garganta
para
a hora exata de alimentar fantasmas.
No
cotidiano vazio e ruminante blues,
ecos
do murro no vitral
da
catedral modelo para armar.
Saudemos
o poeta pintor cósmico
que
calça nuvens ornadas de cabeças gregas!
Saudemos
o novo tempo!
Saudemos
Murilo Mendes muito além
do
arco-íris, dos arquitetos que projetam
espigões
cubistas, barcos ancorados no espaço!
Depois
de ti, grande mestre, vibrarão outros
gritos
terríveis diante dos limites do Homem.
O
menino experimenta a alquimia do verbo
As
palavras escorrem como geleias de maçã
sobre
as passagens ressentidas.
Jogos
de ilusão e poder nas cartas do mágico,
Las
Vegas, Wall Street e Avenida Paulista,
estrelas
rachadas gotejam leite dos deuses,
Eu
vejo meninas de seios estourando
esperando
na grande loja de variedades,
garotos
grandes, de coxas largas,
pílulas
energéticas, passatempo
estimulante
rápido./
A
noite grande encherá o espaço
de
diversões eletrônicas,
e
os corpos ocos se multiplicarão em outros.
Rubens Shirassu Júnior
Livro: Cobra de Vidro, poemas, página 50,
ProAc (Programa
de Ação Cultural)
uma promoção do Governo do Estado de
São Paulo e
Secretaria da Cultura, 2012.
Clique e acesse o link do
curta “Janela do Caos”, de Jose Sette Barros no You Tube:
http://youtu.be/zgR8n8y5MvQ
Fonte:
*
GILFRANCISCO. Murilo Mendes: Um Poeta Visionário, artigo publicado em 2006 no site:
www.germinaliteratura.com.br/literaturagfesp_agosto2006.htm
Referências:
GUIMARÃES,
Júlio Castañon. Murilo Mendes: A Invenção do Contemporâneo, Coleção Encanto
Radical, volume 73, editora Brasiliense, 104 páginas, São Paulo,1986;
**MERQUIOR,
José Guilherme. O Fantasma Romântico, editora Vozes, Petrópolis, 1980;
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