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Projeção ambígua













“O poeta moderno não fala a linguagem da sociedade e não comunga com os valores da civilização atual. A poesia do nosso tempo não pode escapar à solidão e à rebelião, a não ser através de uma mudança da sociedade e do próprio homem. A ação do poeta contemporâneo só pode exercer-se sobre indivíduos e pequenos grupos. Nessa limitação talvez residam sua eficácia presente e sua fecundidade futura.”

Octavio Paz









            Lautréamont, nos Cantos de Maldoror, pelas características do personagem, comparando a todos os heróis “bons” impregnados de valores cívicos e morais, ele é o anti-herói por excelência, a contestação em estado puro, em uma época em que os heróis míticos tradicionais aparentemente perderam sua razão de ser porque, usando os recursos da tecnologia digital, somos capazes de realizar façanhas que ultrapassam, de longe, a ação de qualquer um deles.
            “Mais ainda, no momento em que o psiquiatra cuida dos Don Juans, Romeus, Hamlets, Faustos, da mesma forma como cuida de Édipo – ele os cura...” nos diz o filósofo Herbert Marcuse. Maldoror recusa a cura, qualquer forma de redenção ou de salvação. Isso fica particularmente claro no episódio da luta com o arcanjo-caranguejo do Canto Sexto, na última estrofe do Canto Segundo, da luta com a Consciência, e na bela estrofe da lâmpada do bico de prata, também no Canto Segundo: “Por um instante, acredita ter-se enganado, e se pergunta se deveria ter prosseguido pelo caminho do mal, como o fez. A perturbação passou; persevera em sua resolução.” Poder-se-ia duvidar da eficácia, dessa forma de assumir o mal, alegando que na realidade esse mal todo nada mais é do que um mal social, imanente, e que, portanto, ao assumi-lo automaticamente justifica o bem social, os valores da ordem estabelecida.
            A obra de Lautréamont desencadeia um ciclone formidável. Não receio escrever que o fenômeno provém do movimento circular, um círculo de fogo e cujo centro nos encontramos produz a impressão de um vazio em chamas ou de uma inerte e sombria plenitude. Uma fenomenologia da agressão pura, assim como podemos declarar de poesia pura, encantada pelas liberdades totais da vontade. Parafraseando Antonin Artaud: Tentaram calar o inconcebível Conde de Lautréamont, a exemplo de Baudelaire, de Edgar Allan Poe e de Gérard de Nérval. Os juízes da moral e dos bons costumes tinham medo de que a poesia deles saltasse fora dos livros e deixasse a realidade em completa desordem.
            O criador provocante de uma poesia em prosa, declara também ter feito “um pacto com a prostituição a fim de propagar a desordem entre as famílias: o elogio da pederastia, do vampirismo e da crueldade. Ao exortar o canibalismo, quando seu leitor é instado a arrancar os braços da mãe, picar em pedaços e comer logo em seguida sem demonstrar emoção. Existe também o ilógico zoo de seres híbridos que povoa as visões de Maldoror, como o homem com cabeça de pelicano, a lâmpada que se transforma em pessoa, o hermafrodita solitário que ele surpreende no bosque ou a fêmea de tubarão que o recebe, com olhares ferozes, mas sem carnificina, para fazer amor sob o mar.
            Graças aos trabalhos de pesquisadores de várias línguas, sabe-se hoje, por exemplo, grande parte do bestiário que vem à tona nos “Cantos” foi extraída de descrições científicas que a pena alucinante do artista modificou como quís. Isidore Ducasse, que se assinou como Conde de Lautréamont ao publicar os “Cantos” completos (1869) e que fez do desvairado Maldoror uma ambígua projeção de si mesmo, nasceu em Montevidéu, de pais franceses, em 1846, deduz-se, terá sido um leitor voraz de obras de história natural.













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