Pular para o conteúdo principal

A principal ferida social








Aracelli, Meu Amor, chegou a ser censurado e apreendido,
sob a única alegação de que atentava contra
a moral e os bons costumes









Uma literatura que não usa perfume, nem trajes de gala. Em José Louzeiro, as coisas aparecem com o odor que há em nossa realidade social, envoltas por farrapos de favelados ou cidadãos de segunda classe, por disfarces, ternos com cheiro de delegacia ou, ainda, por uniformes a serviço de objetivos escusos. Neste autor, que ousa levar a reportagem às últimas consequências, a busca da objetividade e a tentativa de resgatar do esquecimento o drama humano causador e decorrente da violência deslocam para um segundo plano as preocupações de ordem formal. As frases esmeradas ou as expressões exatas cedem lugar ao “jeito de falar” do povo, para o palavrão cru, sem que isso deixe de prender o leitor da primeira à última linha de qualquer de suas obras.
Falar do escritor José Louzeiro não é uma empreitada fácil. Mais ou menos como atirar pedras num vespeiro: o risco de ferroadas será alto. Isso porque ainda há críticas e intelectuais, de excessivo rigor, que não só questionam a condição de escritor como condenam qualquer tentativa de jornalista se meter a fazer literatura com os fatos do cotidiano. E Louzeiro, jornalista e roteirista de cinema, dos melhores.
Vejam no que dão os exageros: esquecem-se eles que Ernest Hemingway, ao escrever Por Quem os Sinos Dobram, nada mais fez do que romancear seus textos de correspondente de guerra de um jornal norte-americano, durante a Guerra Civil Espanhola. E, para ficar nas letras nacionais, também Euclides da Cunha criou Os Sertões, depois de ter coberto a Guerra de Canudos para O Estado de S. Paulo.
Não que esteja querendo comparar Louzeiro ao escritor norte-americano ou ao nosso Euclides da Cunha. Estou é explorando uma coincidência, enquanto o primeiro escolheu como tema a guerra entre os republicanos e os fascistas espanhóis, Euclides a dos místicos de Conselheiro contra o nosso glorioso Exército. Louzeiro aborda a guerra permanente e cada vez mais desigual e cruel dos fracos e oprimidos contra os poderosos e seus aliados armados, a Polícia.
O escritor José Louzeiro não tem o beneplácito da crítica oficial. Muito menos espaço condizente nos chamados órgãos de divulgação. Nem badalação na inteligentzia nacional. Considerado um dos autores que mais vendeu nesse País. Apesar disso, seu único livro incluído nas listas dos mais vendidos da grande imprensa foi Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia. E aqui outra coincidência, não menos curiosa e inexplicável: seu primeiro livro a abordar a guerra, que ele resolveu adotar como tema nos seguintes.
Por que será? Existe realmente uma espécie de boicote, em virtude da fixação numa temática que já caracterizou sua obra? Será por que o livro que veio a seguir, Aracelli, Meu Amor, denuncia uma escabrosa e inacreditável conspiração dos poderosos, em conluio com os detentores eventuais do poder, visando, e conseguindo deixar impunes os autores de um crime bestial, praticado por diletos filhos do lado sempre vitorioso desta guerra? Em 18 de maio de 1973, Aracelli Cabrera Crespo, de apenas 8 anos, drogada, abusada sexualmente, morta e desfigurada por ácido, tem o seu nome manchado de sangue há 41 anos pela impunidade no Brasil! A data transformou Aracelli no símbolo do Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, pelo Congresso Nacional. Ou será ainda porque uma análise literária considerando a trama demasiadamente linear, o foco narrativo às vezes beirando perigosamente o óbvio, personagem de pouca e rara profundidade – ainda que outros babados não satisfaçam o gosto apurado dos fruidores contumazes dos Ulisses (tanto de James Joyce como o de Homero)  e Avalovara, de Osman Lins. Se assim fosse, nem eles nem as editoras existiriam, por insuficiência quase absoluta de consumidores.
Acredito que o caminho para examinar a obra de Louzeiro não é por aí. Pelo menos depois que escreveu Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia, em 1975, abandonando o formalismo existente em Depois da Luta, o livro de contos de sua estreia. A partir dali seu discurso é despojado, jornalístico e que prende o leitor muito mais pelo desenvolvimento da trama do que pela elaboração da linguagem. Também o conteúdo se revela um filão inesgotável: a denúncia da corrupção e da violência do sistema político-social, vista através de um dos seus setores - o aparelho policial do Estado.
Podemos imaginar o que essa opção exigiu-lhe em coragem e consciência do seu papel de escritor, enquanto porta-voz da enorme maioria amordaçada do povo e depositário da memória da fase mais negra da história deste país. Não nos esqueçamos que tanto Lúcio Flávio quanto Aracelli foram escritos ainda sob o terror oficial, expresso e sinistramente praticado à sombra do famigerado AI-5. Aracelli, Meu Amor, pasmem os mais novos, chegou a ser censurado e apreendido, sob a única alegação de que atentava contra a moral e os bons costumes.
Este livro, antes de tudo, um libelo contra a extensão, volume e peso do poder dos ricos em nosso país, que tudo podem: exploram o povo, esmagam os pequenos, violam as leis – que eles mesmos, como classe dominante, elaboram -, corrompem o aparelho de Estado, manipulam a Justiça, pairando sempre olímpicos, acima do bem e do mal: trata-se de uma história exemplar porque, baseada em fatos reais, comprova, mais uma vez, a impunidade dos poderosos e reforça a frase cunhada pela sabedoria popular de que “cadeia não foi feita para rico.” Uma amarga sensação da impotência dos fracos diante do poder desmesurado dos fortes, passados quase 42 anos, o crime continua impune.
Livros como Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia ou Em Carne Viva não são simples retratos corajosos de um dos períodos mais tristes de nossa história. São dedos pousados sobre uma de nossas principais feridas sociais: a violência. Sua literatura incomoda os bem-postos e os bem-pensantes. Talvez por isso Aracelli, Meu Amor tenha sido apreendido e a obra de Louzeiro ainda não tenha subido os degraus que separam o mundo da Academia.










ARACELLI, MEU AMOR
José Louzeiro
Romance-reportagem
232 páginas
Tamanho: 14 x 21 cm
Editora Prumo
Rio de Janeiro - RJ
2012


 
 


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O PAU

pau-brasil em foto de Felipe Coelho Minha gente, não é de hoje que o dinheiro chama-se Pau, no Brasil. Você pergunta um preço e logo dizem dez paus. Cento e vinte mil paus. Dois milhões de paus! Estaríamos assim, senhor ministro, facilitando a dificuldade de que a nova moeda vai trazer. Nosso dinheiro sempre se traduziu em paus e, então, não custa nada oficializar o Pau. Nos cheques também: cento e oitenta e cinco mil e duzentos paus. Evidente que as mulheres vão logo reclamar desta solução machista (na opinião delas). Calma, meninas, falta o centavo. Poderíamos chamar o centavo de Seio. Você poderia fazer uma compra e fazer o cheque: duzentos e quarenta paus e sessenta e nove seios. Esta imagem povoa a imaginação erótica-maliciosa, não acha? Sessenta e nove seios bem redondinhos, você, meu chapa, não vê a hora de encher a mão! Isto tudo facilitaria muito a vida dos futuros ministros da economia quando daqui a alguns anos, inevitavelmente, terão que cortar dois zeros (podemos d

Trechos de Lavoura Arcaica

Raduan Nassar no relançamento do livro em 2005 Imagem: revista Usina             “Na modorra das tardes vadias da fazenda, era num sítio, lá no bosque, que eu escapava aos olhos apreensivos da família. Amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma, vergada ao peso de um botão vermelho. Não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor velando em silêncio e cheios de paciência o meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda?” (...)             “De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo. E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo. E, se eles er

O Visionário Murilo Mendes

Retrato de Murilo Mendes (1951) de Flávio de Carvalho Hoje completaram-se 38 anos de seu falecimento Murilo Mendes, uma das mais interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta difícil e, por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade desconcertante, sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Wolfgang Amadeus Mozart e ouvia suas músicas de joelhos, na mais completa ascese mística, não permitindo que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões. Certa vez, telegrafou para Adolph Hitler protestando em nome de Mozart contra o bombardeio em Salzburgo. Sua fixação contemplativa por janelas foi assunto do cronista Rubem Braga. Em 1910, presenciou a passagem do cometa Halley. Sete anos depois, fugiu do internato para assistir ao brilho de outro cometa: Nijinski, o bailarino. Em ambos os casos sentiu-se tocado pela poesia. “Na