Pintura de Frida Kahlo, 1932
“O pessoal também é
político” – foi uma frase bastante divulgada no decorrer dos anos 70 e
considerada por muitos apenas como um slogan das bases militantes dos
movimentos com intenções transformadoras da época. Hoje, em meio à acentuada
guinada conservadora desde a década de 1980, induzida de cima para baixo e
intensamente disseminada pelos meios de comunicação, ela assume conotações bem
mais inquietantes, especialmente no terreno da sexualidade, que tem se mostrado
o alvo preferencial. O fato não é fortuito, pois ao longo da história, nenhuma
outra faceta do comportamento humano tem sido mais manipulada pelas ideologias:
afinal, abrange toda a humanidade, está inscrita nos próprios corpos e tem
repercussões em todo o psiquismo.
No momento em que os
governos de numerosos países impõem leis baseadas em textos de inspiração
religiosa de muitos séculos atrás; que chefes de Estado se esmeram em farisaicos
discursos moralistas ou apelam para a censura; que “cruzadas morais” se
disfarçam em preceitos científicos; pregadores reacionários formam verdadeiros
impérios dentro da mídia eletrônica, catalisando, sob o pretexto da religião,
as histerias coletivas – essa preocupação com o retrocesso se justifica
plenamente.
Ela é a fonte de
inspiração para a escritora canadense Margaret Atwood, em seu romance A História da Aia, uma ficção
científica, ou melhor, uma fábula só aparentemente futurista sobre o que seria
uma sociedade em que os fundamentalistas conseguissem dominar o poder. A
exemplo de outras escritoras contemporâneas de língua inglesa, como Ursula Le
Guin, Doris Lessing ou Joana Russ, ela escolheu esse gênero como o mais
adequado para transmitir certas preocupações atuais, usando os poderes
envolventes da ficção, mais convincentes que qualquer ensaio, porque nos
apresentam seres humanos possíveis, e
não só ideias desencarnadas.
Atwood, que o público
brasileiro já conhece de dois romances anteriormente publicados pela mesma
editora, Madame Oráculo e A Vida Antes do Homem, exibe novamente
duas das qualidades que já demonstrará: rica imaginação, aliada a um certeiro
senso de observação de comportamentos humanos contraditórios e complexos.
Entretanto, a mistura de patetismo e de humor que caracterizava, por exemplo, Madame Oráculo, está quase ausente deste
novo texto, talvez porque ele se pretenda mais demonstrativo de um clima
opressivo, aproximando-se, em muitos trechos, do já clássico 1984, de George
Orwell. Ela consegue, porém, recriar esse clima sem recorrer ao panfleto,
delineando de forma sutil as emoções, sob o ângulo subjetivo da personagem
central. Esta é uma “aia”, ou seja, uma mulher destinada exclusivamente à
reprodução, a serviço das novas classes dominantes, que, naturalmente, impõem
aos subordinados padrões restritivos que os “chefes” se permitem transgredir
tranquilamente. Mais subordinadas do que nunca e reduzidas praticamente a seu
papel reprodutivo, estão colocadas as mulheres, numa revivência exacerbada do
milenar adágio patriarcal: tota mulier in
utero (a mulher inteira está no útero). Como sempre, entre algumas, isso
levará à solidariedade e à resistência subterrânea, partilhada com alguns
homens rebeldes, entre outras, acentuará a rivalidade.
A descrição
extremamente realista de um absurdo possível, revela, à maneira de Franz Kafka,
o elo inseparável entre a repressão sexual e a política. O problema da
verossimilhança, que poderia ter sido deixado só à construção ficcional, é
resolvido de forma engenhosa, mas um tanto supérflua. O texto é definido como
um relato gravado em fitas cassetes pela “aia”, redescoberto e decodificado,
muito tempo depois do desaparecimento desse regime, por pesquisadores da
história de fins do século XX, quando teriam ocorrido os eventos descritos.
Relato essencialmente pessimista, mas que termina com uma implícita mensagem
otimista vale a pena lutar contra as tiranias porque nenhuma delas dura para
sempre.
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