Memória de René Magritte - 1948
Acabo de examinar
quatro livros dos gêneros relatos históricos, didáticos e de memória, com
atenção e empenho. São bem diversos do Joaquim Silva do fim dos anos 30. Os
volumes são bonitos, com muitas gravuras e bela diagramação, em esforços
gráficos de certas editoras. Procura-se avivar a linguagem de modo a despertar
o aluno ou o pesquisador. A melhor qualidade dessa produção deve ser creditada
aos cursos de História das Faculdades de Filosofia: se eles não deram ainda
quanto se espera, no preparo de gente qualificada para desenvolver os estudos
no país, com metodologia severa e pesquisa intensa, pelos menos elevaram
consideravelmente o nível do ensino médio, chamado antes de segundo grau.
Antes de apontar
faltas ou vícios destes livros quanto ao aspecto didático, impõe-se fazer o seu
elogio. É difícil realizar trabalho do gênero. Autor culto na especialidade
pode escrever de modo inadequado, pelo uso de técnica imprópria, com exposição
fora do alcance do jovem, ainda sem intimidade com os temas ou a natureza do
conhecimento histórico. Outro, menos culto ou erudito, pode ter êxito, por
encontrar a forma de atingir o estudante, despertando-lhe a curiosidade e o
gosto. A leitura dos textos despertou-me admirações, pelos esforços de autores
na busca da forma ideal, no que são secundados pelas editoras com a diagramação
sedutora, ilustrações, mas carece de quadros sinóticos, questionários, leituras
suplementares, com apelo até a história em quadrinhos, charadas ou palavras
cruzadas. Não mais a exposição solene, mas a busca do objetivo, simples,
atraente.
Nesse esforço,
costumam comprometer o texto, com o sacrifício do conteúdo ou até a linguagem,
quando o coloquial pode chegar à vulgaridade, o esquematismo à simplificação
empobrecedora. Demais, a economia de palavras prejudica a exposição, no uso
excessivo de figuras, de modo a contribuir para agravar o desinteresse pela
leitura, já tão comprometida com os abusos do audiovisual, a obsessiva
assistência de televisão, que induz à preguiça e debilita o raciocínio. Vê-se
apenas, assimila-se o produto acabado, aceito passivamente, sem reflexão ou
crítica. A impressão da leitura desses textos é a do labor meritório de
encontrar o modo de comunicação. Se não é fácil, elogie-se o empenho de tais
autores. Tinham uma tarefa difícil e deram o que podiam. Confesso admiração por
eles, mesmo alguns notoriamente fracos, pois só quem tentou algo sabe dos
entraves quase insuperáveis. O certo, porém, posto de lado o desejo de ser
compreendido, é que os resultados quase sempre deixam a desejar.
São observações
feitas de leitura, não da experiência, tanto de um escritor, de mero
colecionador de cartões e imagens antigas, ou professor que tivesse usado os
livros com os alunos. Assim, não se veja, em quanto se disse, mais que uma
opinião pessoal. É importante o exame do assunto, pois o nível médio pode ser
decisivo para a aceitação ou a recusa da História.
A impressão geral de
quanto se leu é a da falta de conhecimento maior da matéria. Os autores talvez
sejam bons na didática da sala de aula, mas quase sempre têm precário domínio
do assunto – há exceções, é claro. Só o conhecem em nível médio, distantes da
ciência histórica de nosso tempo. Parecem saber pouco da bibliografia. Insistem
no anedótico, na cronologia rígida, multiplicando datas; têm apego excessivo a
nomes, supondo e fazendo exposição demasiado factual, raramente superando a
narrativa, sem exame reflexivo, na tentativa de compreensão ou interpretação do
processo histórico, cuja realidade não é apreendida. Falta-lhes, quase sempre,
o senso da dinâmica, não percebem a trajetória em seus acidentes, como se a
História fosse algo mecânico, quando ela é eminentemente viva. Perder o sentido
de fluxo ou mudança é perder o essencial, fazendo esquema estático, negação da
História.
Atendo-se ao
acontecimento, deixam de lado o básico, que são os costumes, o cotidiano, as
ideias e crenças, as paixões, as molas propulsoras do homem e das sociedades.
Detêm-se nos eventos e estes são quase os políticos, no que a política tem de
mais epidérmico – o mando, as guerras, entre as nações, esquecidos de que o
essencial é o poder e este não está quase nunca no chefe aparente, mas em seus
donos e manipuladores.
A linguagem nem
sempre é respeitada. E menos esquemático, mas apela muito para os arrolamentos
de suposta decoração – presidentes, governadores, prefeitos, vereadores, entre
outras autoridades, pioneiros exploradores e vendedores de terras devolutas e
complementando com os conhecidos “posseiros.” Repetindo velha forma da pirâmide
social, ufanista e colonialista, fala da fundação das cidades da região oeste
do Estado de São Paulo, como se estes só existissem em função da iniciativa dos
coronéis migrantes e apropriadores de terras alheias (grileiros). Carece nestas
publicações a narrativa em quadrinhos e de ilustrações de qualidade: sem
figuras que parecem anjinhos ou santinhos, sem humanidade, com inaceitáveis
retoques. Tem visão ufanista, no vocabulário, ocorrem alguns erros ao exaltar
“as façanhas de nossos heróis pioneiros”, entre vários termos, como
“bandeirante do século XX.” As ilustrações têm enfeites em excesso, em
discutível colorido. A ordem dos capítulos tem coisas estranháveis.
O bom livro de
História para estudantes e demais leitores não pode restringir-se ao
conhecimento, por parte dos autores, do mero factual, em narrativa acrítica. Só
quem conhece mais o processo das trajetórias nacionais ou sociais apreende a
História no essencial. E para tanto é necessário certo domínio
interdisciplinar, uma vez que o social não se segmenta em história, economia,
sociologia, antropologia, direito, religião, arte, ciência, mas é uma
totalidade. O principal defeito desses livros é que seus autores não parecem
ter esse entendimento. São de formação deficiente, sabem uma história
apreendida em livros de divulgação. E, então, esboça-se esquema de idades – a
exemplo dos termos Moderna e Contemporânea – tão superado, como se sabe. Ele
nada tem de universal e leva ao etnocentrismo europeu, pois é copiado de
autores daquele continente. E se tem a história das civilizações desenvolvida
em torno do mar Mediterrâneo; o resto é ignorado, ou visto como repercussão do
expansionismo europeu. Negam-se as demais culturas, em processo pouco
inteligente e dominador, fruto de um evolucionismo mal compreendido.
Ora, a moderna
ciência social não admite mais o esquema que leva a discriminações e
privilégios, injustos e poucos inteligentes, pois a etnologia ensina o
significado de todas as culturas: elas são a resposta ao desafio de cada meio e
cada tempo, válidas como respostas para sua afirmação. A História,
inteligentemente compreendida, é o domínio do relativo e, como tal, da
tolerância, do entendimento entre os povos. É a melhor lição para a paz, para a
harmonia entre as nações, fim das discriminações étnicas, de sexo, grupos
sociais, comportamentos divergentes. Bem compreendida, tem função pedagógica
superior. Ela e só ela pode inspirar a vida política nacional e internacional,
hoje conturbadas com disputas surgidas de ambições e resultantes de falta de
conhecimentos que a História dá, no culto de todos os valores humanos,
respeitados e acatados quando compreendidos. O livro didático pode contribuir
decisivamente para esse estado ideal, que não é utópico, mas possível,
conquanto a natureza do seu conhecimento seja de fato captada. Para tanto,
estes livros podem contar e contam, se atingem sua forma justa, da qual estamos
distanciados pelas suas notórias insuficiências. Já é tempo de cuidar de sua superação.
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