O Jardim das Delícias de Hieronymus Bosch
“A única saída para o Ocidente
seria uma radical
reformulação
do estreito pensamento racionalista vigente,
através da
criação de um “mito novo”,
fundado no amor, na humildade e
imaginação livre.”
“A
ausência de sistema é também um sistema,
mas é o
mais simpático”.
Tristan Tzara
Sob uma excitação inusitada, as
palavras e frases intuitivas colhidas poderiam ser uma via de acesso ao
inconsciente tão importante quanto o sonho ou o depoimento sob hipnose. O que
me interessa é alcançar as fontes poéticas soterradas pela razão utilitária e
pela lógica tradicional. Livre da função coercitiva imposta pela razão, a
linguagem se tornaria transparente e seria um instrumento de conhecimento e
libertação do homem. Expressão surrealista como meio de descoberta de terrenos
ainda não explorados sistematicamente: o inconsciente, o maravilhoso, o sonho,
a loucura. Desprezo às armas fornecidas pelo aparato lógico da ciência
tradicional, apelando para os recursos utilizados desde sempre pelos artistas:
a intuição e a inspiração, o desregramento de todos os sentidos.
A ênfase da atividade supra-real
voltou-se inicialmente para a exploração dos chamados “estados secundários”, em
particular o transe mediúnico e o sono hipnótico, não deixando de recorrer nem
mesmo aos procedimentos e técnicas exteriores do Espiritismo (como a
constituição de “correntes espirituais” em torno de uma mesa, prática exercida
pelos Kardecistas) no caminho do acesso ao inconsciente. Reivindico para os
pós-surrealistas a herança dos que tinham, antes deles, mergulhado no abismo de
seu próprio inconsciente, perdendo-se para a vida mundana e vivendo sob a forma
de poesia pura: Nerval, Baudelaire, Sade, Rimbaud, Lautréamont, e Jarry.
Para os surrealistas, o essencial é
buscar a surrealidade, realidade absoluta onde se fundem o conhecido o
desconhecido, o consciente e o inconsciente. A impressão de facilidade da
poesia automática é falsa: na verdade, é preciso um grande esforço de
desligamento das influências e solicitações exteriores, uma disponibilização
total e reveladora de suas profundezas interiores.
Tudo leva a crer que existe um certo
ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e
o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo cessam de ser
percebidos contraditoriamente. O móvel de toda atividade pós-surrealista será a
esperança de determinação desse ponto. O pressuposto dessa busca interior é uma
ruptura radical com o mundo tal como ele está organizado, pelo exercício de uma
violência constante e universal. Ao mostrar as relações evidentes entre o
sonhado e o real, conclui que a interpretação do estado de vigília e sono
demonstra o poder absoluto da subjetividade universal, que é a realeza da
noite.
Vejo o sonho como uma recarga do
desejo humano, e não como uma fuga ou um naufrágio da razão. Nessa medida, é
possível fazê-lo servir à emancipação do Homem, desde que este interprete-o
corajosamente e desenvolva sua vida em função dos signos do inconsciente, e não
mais sobre o seu soterramento.
Minha poesia e arte plástica de
“maturidade”, caminham cada vez mais para uma síntese entre o simbolismo e
preciosismo de Mallarmé e Valery, na via de automatismo (desprezo pela
atividade consciente de construção e invenção poéticas). Entram essas duas
posturas contrárias, na tentativa de fundir a espontaneidade “automática” da
evocação das imagens com o rigor na escolha do vocábulo preciso, do signo exato
do ritmo perfeito. Minha concepção de poesia, de resto, ia além do poema
significando muito mais uma determinada postura diante da vida, onde o sonho e
a realidade diurna não estariam divorciados, mas seriam “canais magnéticos”.
Mais do que um novo ensaio
surrealista, trata-se de um libelo em defesa da humanidade ameaçada pelo ódio,
pela violência e pelo dogmatismo (religioso ou outro qualquer). Nada do que foi
estabelecido ou decretado pelo homem pode ser definitivo e intangível, e ainda
menos se pode tornar objeto de um culto se este ordena a desistência em favor
de uma vontade anterior divinizada.
A única saída para o Ocidente seria
uma radical reformulação do estreito pensamento racionalista vigente, através
da criação de um “mito novo”, fundado no amor, na humildade e imaginação livre.
Meu pensamento, por outro lado, abre-se cada vez mais a todo tipo de
experiência que fuja do racionalismo ocidental e aponte para a busca do
desconhecido e do maravilhoso.
Estudando Antropologia, Alquimia e
Espiritismo, cuida sempre de evitar que os fenômenos suscitados ou estudados
por essas práticas sejam vítimas de qualquer forma de manipulação religiosa
(que significaria seu aproveitamento para a escravização do pensamento humano.)
( Página 10, revista Trem Azul, Ano I, número 3, Maio de 1998,
Cataguases, Minas Gerais. Religar às Origens - 1981 - 2010 -
Ensaios e Artigos, Páginas 58, 59, 60 e 61, editora Clube
de Autores, São Paulo, 2011)
www.clubedeautores.com.br
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