Pular para o conteúdo principal

Entrevista - JOILSON PORTOCALVO








“Minha leitura é tão desregrada quanto a escrita”







Ao longo de uma carreira somando 38 anos, que reúne os gêneros poesia, novela, infantojuvenil e antologias, Joilson Portocalvo resgata a brasilidade perdida por sua literatura de linguagem concisa, onde mescla hiper-realismo, humor, violência e fantasias eróticas.  Seus livros não têm as marcas da influência europeia, de pouca ação de fato, centrada no turbilhão inconsciente dos personagens. Sua prosa se afasta do romance tradicional desenvolvido desde o século 19, repleto de detalhes e tomadas panorâmicas lentas realizadas por uma câmera de vídeo.
O autor, de Porto Calvo-AL e radicado em Brasília-DF desde 1961, concedendo a entrevista pela internet, fala sobre influências e ideias, pois sua escrita tem estilo e visão literária própria. Fora dos padrões estéticos acadêmicos, como Lima Barreto, João Antônio, Plínio Marcos, Carolina Maria de Jesus, Nelson Rodrigues e Dalton Trevisan.


                     Rubens Shirassu Júnior - Qual sua opinião sobre o papel da literatura na sociedade?
Portocalvo – É um registro do tempo e das coisas, mesmo que a criação literária, de certa forma, mascare a realidade. O escritor (aparentemente) distorce a verdade e a conta de maneira mais honesta. Diferente do que a política e a mídia tentam impor.

Rubens Shirassu Júnior - Alguns escritores consideram a escrita uma prática árdua, outros acham que é um processo natural (gerado da vontade), ainda há alguns que escrevem porque pretendem dizer algo mais. E você, como considera o processo de elaboração da escrita literária?

Portocalvo – Há muito entendo que todo processo artístico requer muito mais transpiração que inspiração. Literatura é tudo e ao mesmo tempo não é nada. É cachaça e sonho. Às vezes machuca. Quanto ao processo, no meu caso é desregrado, indisciplinado. Escrevo sem compromisso, sem disciplina. Certo do desinteresse da maioria que considera literatura algo supérfluo, num país que vira as costas aos valores “objetivos”, imagina o que faz com o “subjetivo”? Caberia que fosse respondida a pergunta: Pra que serve a literatura?


Rubens Shirassu Júnior - Seguindo a linha de que escrever é uma consequência, quais foram os autores e livros que lhe influenciaram para a carreira de escritor?

Portocalvo – Sempre respondo que escrevo desde que aprendi a escrever, li por obrigação e por prazer. Alguns escritores me proporcionaram prazer num tempo (de pobreza) com acesso restrito à literatura, o que me chegava às mãos era emprestado ou descartado por outros. A música teve grande influência na minha formação. Vinícius chegou trazendo Chicos, Caetanos e Gilbertos Gil; Drummond, Bandeira e tantos outros. Doses cavalares de poesia, injetadas por um professor “viciado”, Ruderico Rangel.  A prosa foi forçada pela escola. Felizmente dentre os que eu não gostava, chegaram Clarice Lispector, Graciliano Ramos, José de Alencar e Machado de Assis, dentre outros tão bons quanto.

Rubens Shirassu Júnior - Suas leituras são rigorosas? Que tipos de livros prefere ler?

Portocalvo – Minha leitura é tão desregrada quanto a escrita. Comigo tudo é sem tempo e sem compromisso. Às vezes leio até três livros ao mesmo tempo. Outras vezes entro numa espécie de letargia: não leio nem escrevo nada. Literalmente me esvazio. Leio de tudo, mas prefiro o conto. As novelas e os romances (curtos e modernos). Prefiro não citar autores. Embora tenha parado de escrever poemas, gosto de ler poetas brasileiros e portugueses.


Rubens Shirassu Júnior - Suas micronarrativas revelam um poder de síntese no que se refere à construção do texto. Elas estão próximas dos instantâneos do haicai japonês do que os outros livros?

Portocalvo – Provavelmente seja porque não consigo fazer haicai, tento dar o recado na prosa. Às vezes consigo. Ou estarei aderindo à linguagem dos novos meios de comunicação social?

Rubens Shirassu Júnior - É recorrente que cada escritor tem uma mania particular. E você, Joilson, possui algum ritual quando vai escrever o trecho de um romance ou conto?

Portocalvo – Tive uma mania que finalmente perdi: escrever em lugares públicos e em qualquer papel. Escrevi A dança da lua cheia numa velha agenda, enquanto esperava ônibus, e em filas de banco. Fingia ignorar a plateia. Acho que era uma maneira de ostentação. Percebi que estava era querendo aparecer. Andava sempre com uma agenda que só se prestava para esse fim.

Rubens Shirassu Júnior - Você, então, não faz o chamado "plano de voo" para seus livros?

Portocalvo – Nunca tentei escrever com um “plano de voo”. O máximo que faço é anotar algum tópico e desenvolver depois. Começo e pronto. De início domino o tema, depois ele me domina, me possui. O personagem faz o que quer de mim. Preciso ter cuidado para algum personagem não “entregar” meus lados obscuros. Cabe lembrar que me guio pela intuição.

Rubens Shirassu Júnior - Após um primeiro livro de poemas, vieram os romances, os livros infantis e a organização de antologias. Por que o abandono da poesia como gênero literário?

Portocalvo – Foram dois livros de poemas: Silêncio inquieto, 1978 e Cio, 1985; a seguir vieram os livros de prosa: Cinzas de alfazema,* 2001, depois vieram outros. Abandonei a forma POESIA, mas não o conteúdo, creio que exerço poesia na prosa. Talvez tenha sido a poesia que saiu à francesa, para não me humilhar. Eu não conseguiria ser tão bom quanto os melhores poetas que conheço.


Rubens Shirassu Júnior - Você acompanha a produção literária brasileira atual. Como vê os escritores a partir de uma linha histórica desde a década de 1990 até a atualidade?

Portocalvo – Assim você me compromete. Depois que conheci Ronaldo Cagiano, com quem escrevi a novela infantojuvenil Espelho, espelho meu, muitos foram os escritores que ele me apresentou. Dentre eles você e o excelente Roniwalter Jatobá, e mais uma dezena de outros que não citarei. Para não dizer que sou machista, cito Stella Maris Rezende, começamos praticamente juntos. Uma das poucas que não entra em “panelinhas”. Dela estou lendo a Sobrinha do poeta. Recomendo.


Rubens Shirassu Júnior - Quais as características para você de um bom livro?

Portocalvo – É o livro que prende a partir do primeiro parágrafo. Precisa antes ter uma boa capa, um bom título. O escritor precisa ter o domínio do tema e em momento algum deixar a peteca cair. O leitor exige do autor a máxima competência para não descartá-lo.

Rubens Shirassu Júnior - Além da literatura, você aprecia outro tipo de arte? Quais os compositores, diretores, pintores, escultores, etc., de sua preferência?

Portocalvo – Sou um pintor e um escultor frustrados. Limito-me a aplaudir o que gosto. Sempre que posso vejo exposições. Ah, sou amigo de alguns artistas plásticos: Byron de Quevedo (afastado das artes plásticas há décadas), Luiz Costa, Toninho de Souza e Zé Maria Machado** (autêntico contador de histórias). Sou também um cineasta frustrado. Fiz alguns cursos na área de cinema, mas não alcei voo. Gosto de boa música, principalmente MPB, música francesa e italiana (antigas). Diante da recuperação da indústria do cinema nacional, vários diretores têm surgido, mas não tenho preferência. Da velha guarda, admiro Nelson Pereira dos Santos e Eduardo Coutinho e Vladimir Carvalho.

Rubens Shirassu Júnior – Como se sabe, a crítica literária, muitas vezes, costuma esterilizar diversos escritores, tanto experientes quanto iniciantes, ao escrever (e isso acontece na maioria das vezes) resenhas severas. Tanto que o termo crítica acaba, às vezes, sendo interpretado com o significado de maldizer alguma coisa. Para você, qual o papel que a crítica deve desempenhar? O que considera uma boa crítica?  

Portocalvo – A crítica nunca me viu: sou invisível. Nenhum escritor escreve para a crítica. Fosse assim Paulo Coelho (prato cheio para os críticos), não faria tanto sucesso. Para o escritor, pior que receber uma crítica é a indiferença, principalmente da mídia. Poucos são os jornais que publicam resenhas. Será que alguém lê resenha antes de comprar um livro? Depois de o livro publicado, resta ao escritor o arrependimento, isto se ele tiver autocrítica. A função da crítica não deveria ser derrubar ninguém, seria melhor que se prestasse ao crescimento do escritor.

Rubens Shirassu Júnior – O que o norteia?

Portocalvo – O ser humano é uma caixinha de surpresas. A riqueza e a diversidade humanas me encantam. Ainda assim me arvoro a “inventar” algum ente. Ainda não encontrei um personagem ideal, por isso pego uma pessoa real (e seu exemplo de vida e injeto uma boa dose de fantasia).

Rubens Shirassu Júnior – Para concluir gostaria que você falasse um pouco sobre as oficinas literárias que realizou em presídios e Caps***, aí, no DF?

Portocalvo – Foi uma ideia “maluca” que me ocorreu no final da década de 1990: levar literatura aos excluídos. Ainda não sabia como. Moradores de rua, prostitutas, “loucos”, presidiários? Quem? Como? Depois de muita procura e muita resistência, optei pelo rígido sistema prisional. No ano de 1998, finalmente consegui a façanha de ser aceito como voluntário no Presídio da Papuda. Surgiu aí a primeira oficina literária, coroada com a primeira antologia Confissões em cadeia. Na sequência produzi, como resultado de outro trabalho, o livro de troca de correspondências entre detentos e familiares Cadeia de sentimentos. As oficinas se estenderam ao Núcleo de Custódia e no Presídio Feminino do DF.
Ingressei em outras instituições (não menos rígidas) de tratamento psiquiátricos: Instituto de Saúde Mental e Caps. Ouso dizer que recebi o maior benefício que os usuários “daquela oficina de humanos”. Nunca me senti tão valorizado. Assim, diante de pessoas especiais percebemos que somos nós os verdadeiros loucos.



* Em preparação a 2ª edição revisada de Cinzas de alfazema sob o título de Uma garota chamada Zé.

** Foi ele quem me contou a história que inspirou o livro Quase fui abduzido em Maranguape, em finalização.

*** Centro de Atenção Psicossocial








Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O PAU

pau-brasil em foto de Felipe Coelho Minha gente, não é de hoje que o dinheiro chama-se Pau, no Brasil. Você pergunta um preço e logo dizem dez paus. Cento e vinte mil paus. Dois milhões de paus! Estaríamos assim, senhor ministro, facilitando a dificuldade de que a nova moeda vai trazer. Nosso dinheiro sempre se traduziu em paus e, então, não custa nada oficializar o Pau. Nos cheques também: cento e oitenta e cinco mil e duzentos paus. Evidente que as mulheres vão logo reclamar desta solução machista (na opinião delas). Calma, meninas, falta o centavo. Poderíamos chamar o centavo de Seio. Você poderia fazer uma compra e fazer o cheque: duzentos e quarenta paus e sessenta e nove seios. Esta imagem povoa a imaginação erótica-maliciosa, não acha? Sessenta e nove seios bem redondinhos, você, meu chapa, não vê a hora de encher a mão! Isto tudo facilitaria muito a vida dos futuros ministros da economia quando daqui a alguns anos, inevitavelmente, terão que cortar dois zeros (podemos d

Trechos de Lavoura Arcaica

Raduan Nassar no relançamento do livro em 2005 Imagem: revista Usina             “Na modorra das tardes vadias da fazenda, era num sítio, lá no bosque, que eu escapava aos olhos apreensivos da família. Amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma, vergada ao peso de um botão vermelho. Não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor velando em silêncio e cheios de paciência o meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda?” (...)             “De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo. E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo. E, se eles er

O Visionário Murilo Mendes

Retrato de Murilo Mendes (1951) de Flávio de Carvalho Hoje completaram-se 38 anos de seu falecimento Murilo Mendes, uma das mais interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta difícil e, por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade desconcertante, sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Wolfgang Amadeus Mozart e ouvia suas músicas de joelhos, na mais completa ascese mística, não permitindo que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões. Certa vez, telegrafou para Adolph Hitler protestando em nome de Mozart contra o bombardeio em Salzburgo. Sua fixação contemplativa por janelas foi assunto do cronista Rubem Braga. Em 1910, presenciou a passagem do cometa Halley. Sete anos depois, fugiu do internato para assistir ao brilho de outro cometa: Nijinski, o bailarino. Em ambos os casos sentiu-se tocado pela poesia. “Na