Olga Savary
escreve o corpo com palavras que inscrevem o desejo no mundo dos prazeres,
infinitos mesmo quando realizados, e também renováveis, pois em estado de
germinação constante. Daí a imagem do coração selvagem e subterrâneo equiparado
ao cerne pulsante da voz que escreve. Subterrâneo não porque escondido, e
selvagem não no sentido de bárbaro, mas ligado à dimensão primordial do ser
carnal que somos, chamando a atenção aos elos entre a capacidade evocadora das
palavras e as astúcias do corpo. Assim, o poema não se furtará às imagens da
sensualidade em fluxo, reinvestindo metáforas consagradas — o coração, a luz, a
ilha, a fonte, as águas —, que, embora largamente utilizadas, não foram
esgotadas em seus sentidos. Podem ser mais uma vez “causalizadas”, como diria a
poeta argentina Alejandra Pizarnik,
apropriadas e investidas de um repertório de sensações singular que relance as
cartas do amor lúbrico.
A
metáfora do coração, como já assinalava María
Zambrano, fala de um ritmo inapelável, de um centro que está confinado, mas
sempre a ponto de romper ou de abismar-se, prometendo passar do som a uma
espécie de fala que seria preciso aprender a ouvir na respiração sôfrega, nas
acelerações e nas pausas repentinas. Equilibrada entre o indizível e a
verborragia que rondam o tratamento do desejo em poesia, o conjunto que esta
antologia reúne é uma das contribuições mais interessantes à lírica no contexto
brasileiro. Transitará entre o culto do mistério ligado ao sexo e a vontade de
franquear limites, dizendo os excessos que conduzem ao ponto culminante de
efervescência e ao vazio.
Sua
poesia é lírica porque vinculada aos gestos de enunciação que mobilizaram a ode
(ímpeto de elogio e adoração) e a elegia (algo foi irremediavelmente perdido),
e por estruturar o poema como questão do endereçamento, de um dizer que circula
entre amantes nomeados e inomináveis, interrogando a dinâmica dos encontros
radicais que desestabilizam os limites entre o eu e o outro. Quando sua
inflexão se torna mais propriamente erótica, a escrita se sustenta no coração
de magma que precisa ser atirado à fera. Inevitável aqui deixar de ouvir o eco
do coração selvagem de Clarice Lispector,
que, noutros termos, também se dedicou a investigar a economia do gozo,
escrevendo o corpo em suas vias tortuosas, crucis e
prazerosas. Mas, enquanto em Clarice a densidade erótica se valia das tensões
do sentimento de culpa à sombra do pecado cristão, em Savary ela se afirma como esplendor, numa espessura livre de
remorso que, talvez, por isso, precise se afirmar selvagem e telúrica, buscando
numa natureza, decerto idealizada, um lugar de pouso.
Este
livro dá a conhecer uma poética afirmativa do corpo desejante, em que as
figuras da entrega e do contato são buscadas na expressão lírica de uma concordância
fugaz. O nome de Olga Savary se
inscreve assim na história recente da literatura brasileira, na companhia de
autoras como Hilda Hilst, de quem foi
próxima, e Leila Mícollis, cujos
poemas também contrariaram a tradicional partilha entre o gênio masculino,
criador, e as musas femininas, objeto passivo de inspiração.
Essa sexualização dos lugares
criativos, em que o sujeito que escreve o seu desejo foi colado à perspectiva
masculina e o seu objeto de desejo, identificado à figura feminina, encontrou
contrapontos desde cedo. Disso dão testemunho os versos de Safo e o erotismo narcótico de Madame
de Staël. Enquanto questão extraliterária ou que ultrapassa seus
limites, a expressão da volúpia e dos prazeres sexuais foi interditada às
mulheres por meio de diferentes políticas morais que visavam (e em certos
contextos, ainda visam) a reconduzir os excessos do desejo sexual aos limites
da reprodução, preferencialmente dentro do casamento. O erotismo é
culturalmente disfuncional porque se opõe à função reprodutora do amor, por
isso as lésbicas, as prostitutas e as mães que abortavam eram vistas como
ameaça à norma sexual, segundo a qual o corpo feminino sexualizado só poderia
existir exercendo função de transmissão hereditária e perpetuação da espécie. O
controle moral e político dos corpos se desdobrava em controle da expressão do
desejo e dos prazeres das mulheres, tornando-se então problema literário.
Assim, o erotismo como coisa literária, sustentado por uma perspectiva
feminina, teve seu acesso em geral dificultado, quando não foi sumariamente
desconsiderado ou reduzido à extravagância.
José Paulo Paes, em Poesia erótica em tradução, antologia por
ele organizada, já apontava para o problema da dominância do discurso
falocêntrico nesse âmbito:
Patente ao longo de todo itinerário da
poesia erótica do Ocidente, essa reificação da mulher aponta para a hegemonia
quase total de um discurso por assim dizer falocêntrico em que o Eros feminino
só aparece como ausência ou como vazio delimitador.*
* José Paulo Paes, Poesia erótica em tradução. São
Paulo: Companhia de Bolso, 2006, p. 16.
A
poesia de Savary contraria, portanto,
essa longa história com versos de positividade erótica, afirmando o primado das
delícias sobre o clássico motivo do desencontro, do sofrimento ou da falta
amorosa. Não que seus poemas sejam uma celebração ingenuamente hedonista, há
consciência ou intuição da perda e de ausência de relação no encontro
sexual permeando a sua escrita. Porém, aqui, o extravio do sujeito em direção
ao outro, frequentemente tematizado na clave angustiada da falta, ao receber
tratamento erótico torna-se um exercício fulgurante — manejo da palavra em
direção ao ponto de perda que possa coincidir com um ponto de gozo. Nesse
sentido, é difícil e, talvez, inútil tentar saber se estamos diante de uma
lírica em circunstância erótica ou de uma erótica em dinâmica lírica. Nos dois
casos joga-se com a morte e com a perda de si.
Sem
pretender fazer um perfil da autora, trago algumas breves informações que
talvez ajudem a situar Olga Savary no
seu tempo. Sua atuação no contexto literário e jornalístico brasileiro merece
maior atenção em estudos futuros que poderão elucidar os diferentes momentos de
sua trajetória, entre o sucesso inicial e a consagração crítica, passando pela
atuação na imprensa alternativa carioca, até os últimos anos, em que sua
produção poética se viu restrita a leitores especializados, com exceção, talvez,
de sua aparição entre os poetas da antologia Os cem melhores poemas
brasileiros do século, organizada por Italo Moriconi, em 2001.
Savary nasceu em Belém em
1933, mas passou a maior parte da vida no Rio de Janeiro, falecendo aos 86
anos, em 2020, infelizmente, vítima de Covid-19. Sua trajetória como poeta,
jornalista e tradutora é reveladora da complexa inserção de autoras no circuito
literário e intelectual brasileiro. Em diferentes entrevistas contava que seu
interesse pela poesia foi despertado pela leitura de haicais, tendo mais tarde
traduzido autores seminais como Issa
e Bashô, além de ter feito sua
própria incursão pelo gênero no volume Hai-Kais, de 1986. Publicou
catorze livros de poemas, um livro de contos e inúmeras traduções.
Estreou
em 1970, com Espelho provisório, publicado pela José Olympio, pelo
qual recebeu o prêmio da Câmara Brasileira do Livro. Sua poesia foi legitimada
por nomes como Ferreira Gullar, Antonio Houaiss e Jorge Amado. Teve livros publicados por importantes editores, como Massao Ohno e José Olympio, e vários deles incluíam contribuição de artistas
visuais. Casou-se em 1955 com o cartunista Jaguar
— Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe —, de quem se divorcia no fim dos anos
1970. Em Savary convivem, em
contraste, a imagem da colaboradora do jornal O Pasquim e a
poeta que queria tomar chá com os imortais da Academia Brasileira de Letras. De
fato, em novembro de 1996, candidatou-se à Academia Brasileira de Letras,
obtendo expressiva votação dos escritores da entidade (como Jorge Amado, Antonio Houaiss, Ariano
Suassuna, Darcy Ribeiro, Dias Gomes, Eduardo Portella, entre outros), mas não o número de votos
necessário. Ao deixar o Pasquim, depois de se divorciar de Jaguar, trabalhou como correspondente
brasileira em diversos periódicos e atuou, principalmente, como tradutora do
espanhol, tendo vertido autores como Jorge
Luís Borges, Júlio Cortázar, Federico Garcia Lorca, Pablo Neruda e Octavio Paz. Embora tenha publicado ao longo dos anos 1980, Olga Savary
viu sua poesia deixar de circular nos meios críticos que surgiam, cada vez mais
próximos e em diálogo com o contexto acadêmico que se renovava, passando a
cumprir o papel legitimador que outras instituições e circuitos haviam
realizado até então.
O
corpo feminino mobilizado na sua poesia, talvez, possa parecer estranho a
algumas vertentes militantes da crítica feminista atual, numa época regida por
contratos, onde o gozo também é reivindicado como um direito. Mas é importante
considerar que, nesta espessura lírica, a soberania se expressa frequentemente
sob a forma de uma devoção refulgente e de uma idolatria excitante, o amante
assim será um rei que é também vassalo, como já atestava o poema “Sumidouro”, do livro Magma (1982).
Hoje, talvez, mais acostumadas a compreender a autonomia do corpo feminino num
quadro de valores e reivindicações jurídico-políticos, por vezes esquecemos
que, para a poesia, a soberania do sentir segue uma lógica de outro tipo.
Tomar
posse do próprio corpo na lírica erótica pode significar despossuir-se e se
deixar possuir. Nesse contexto, a busca por uma satisfação orgástica não
obedece aos parâmetros de equidade nem aos contornos sociais do que se
convencionou chamar de “empoderamento”, já que no campo do gozo os corpos se
entretêm através de outras diferenciações e de outros pactos. A escrita como
reformulação do corpo que deseja é feita por dentro da “queima dos sentidos” (Paul
Celan); o que retesa o corpo desejado pode tornar as palavras inflamáveis.
Essa
autonomia literária que, talvez, resguarde uma porção de autonomia do desejo,
não é pouco significativa. No poema pode-se habitar o corpo como espaço do
íntimo contraditório. Enquanto a enunciação lírica por excelência se apóia nos
vestígios do canto e se inscreve no presente das circunstâncias para reter a
passagem do tempo, eternizando o sentimento amoroso numa dialética entre finito
e infinito, o erotismo opera diferentemente, numa entrega que é pura intimidade
com a morte, com o instante infinito em que se goza e com o nada. Livra a
enunciação lírica do que aterroriza o sentimento amoroso — a sombra do (seu)
fim. Ali onde o lirismo pressente uma falha e rumina a falta, o erotismo vê a
oportunidade de uma entrega selvagem, rumo ao ponto luminescente onde se goza.
Articulados no poema, lirismo e erotismo captam as excitações excessivas, que o
corpo não pode reter e que a palavra vai acolher como um excesso que é preciso
fazer circular.
Olga Savary
maneja sua voz nesse espaço eufórico em que se deixa levar pelo corpo, onde a
palavra guia e dá os termos de um lance. Se o lírico sustenta sua palavra no
gesto do endereçamento, o poema erótico aqui se baseia num gesto de oferenda,
que radicaliza a expressão do desejo de contato. Se, como queria André Breton, as palavras fazem amor, é
porque colapsam sobre uma linha de fuga dos sentidos e assim surgem imagens
líquidas, solventes. A figuração dos amantes nos poemas de Savary desliza em imagens da natureza — quase
clássica, profundamente romântica e idealizada —, quando evoca nossas
raízes indígenas: muitas águas, caudais, termos náuticos em profusão,
transmutações do corpo em elemento fogo e em água tentando plasmar as setas
selvagens do desejo.
De
posse da intimidade da água
e
da intimidade da terra,
a
animais vorazes é a que sabíamos.
(“Nome” do livro Magma)
A poesia não se quer mera expressão
ou tradução da carnalidade, o poema é uma máquina que se alimenta do sêmen do
amante para fazê-lo germinar em verso:
o
fruto teu que degluto,
que
de semente me serve
à
poesia.
(“Nome” do livro Magma)
Em vários poemas nota-se uma tendência para a sublimação musical da língua; o seu não é um erotismo desenfreado, é construído, sobretudo por metaforização, quase à maneira clássica; recorre à natureza também como modo de romper com o modelo de individuação social que mantém os corpos presos em prazeres limitados.
Coração
subterrâneo constrói um percurso fluente e de longo
alcance que permite perceber as dobras dessa voz poética. Inicia em 1947 com o
poema “Mito”, em que a voz poética se
identifica francamente com a posição de idólatra, e termina com o poema “Amor?”, que trata de um “vicioso campo
de batalha” onde com mentira e fingimento os amantes se mordem e se convocam,
feito animais no cio, entre perguntas que giram sem respostas.
Há
na antologia diversos poemas dedicados, alguns a amigos, como Ziraldo, e outros que destilam uma
relação de intimidade não óbvia, trabalhada em camadas de sentido
diferido, como os belos poemas a Drummond.
As dedicatórias funcionam como ritos sociais e afetivos que o poema sela sob a
forma do destinatário primeiro, convocando nossa leitura de modo especial, pois
o poema dá testemunho de uma forma específica de proximidade entre duas
pessoas. Há dois poemas evocativos dedicados a “Sérgio” (o cartunista Jaguar), ainda nos anos 1950, revelando desde
cedo o interesse por uma linguagem alusiva, associando enredos do desejo a uma
secreta sabedoria sobre os afetos, com indagações sobre o tempo que forjam um futuro
entre o realizável e algo que só o poema pode concretizar.
Conforme
a sua biografia: aos 19 anos, com um exemplar do próprio livro embaixo do braço
e a ousadia de uma poeta em ascensão, Olga
Savary visitava o antigo Ministério da Educação e Cultura, no Rio de
Janeiro, onde trabalhava o poeta mineiro Carlos
Drummond de Andrade, aquele que viria a se tornar um grande amigo e
admirador (de sua beleza e poesia). A intenção da jovem era convencer o autor
de Alguma Poesia (1930) a ler os
cem poemas que ela reunira em “Espelho
provisório” (1970), publicado somente no ano seguinte, e recebe o prêmio Jabuti de Autor Revelação de
1971, quando tinha 37 anos. Mal sabia que naquele momento despertara o
encantamento de um dos maiores poetas da Literatura Brasileira e que dali em
diante seria a musa de vários poemas não publicados, dentre eles Miragem (1955):
Chegou, impressentida e
silenciosa,
Com uma saudade eslava nos
cabelos
E um ritmo de crepúsculo ou
de rosa.
Os olhos eram suaves e eis
que ao vê-los,
Outra paisagem, fluída, na
distância,
Sugeria doçuras e desvelos.
No coração, agora já sem
ânsia,
paira a serenidade comovida
que lembra os puros cânticos
da infância.
Logo depois se foi, mas
refletida
nesse espelho interior, onde
as imagens
se libertam do tempo, além
da vida,
Olenka* permanece entre
miragens.
(Carlos
Drummond de Andrade, 1955)
*Olenka era o pseudônimo usado por Olga Savary
em suas primeiras publicações em jornais e revistas.
Os poemas dedicados a Drummond se destacam por encenarem um, “Depois” induz o vislumbre de uma cena prévia em que o poeta lhe teria feito uma confissão, ou vice-versa, confissão que a deixa ao mesmo tempo mais velha e mais menina, tomada por uma febre “nos ouvidos” — imagem para uma escuta que queima —, com sal nos olhos, numa dupla referência às lágrimas e à paisagem. É finalmente uma alegria poder percorrer esses poemas que afirmam a língua falada por um corpo sensitivo, encarnando os velhos sonhos da antiga lírica que vocaliza o desejo e seus impossíveis em imagens para nós ainda ressoantes.
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