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Escrita emblemática

 

(Parte 1)

 Primeira escritora brasileira a atingir a marca

de um milhão de exemplares vendidos,

sendo que 36 dessas obras foram censuradas

durante a ditadura militar


Introdução

            Este artigo problematiza o tratamento dado às obras da escritora Cassandra Rios, por produzir uma literatura erótica que intensificou o combate à “imoralidade” na conduta social e a defesa dos bons costumes entre 1968 a 1977. Apoiados por grupos conservadores da sociedade brasileira, os profissionais ligados ao mecanismo de repressão das diversões públicas (DCDP) atuaram com maior rigor sobre as manifestações culturais do país. As análises priorizam a abrangência de discursos que construíram um perfil de Cassandra Rios vinculada às práticas de transgressão e degeneração dos padrões de moralidade. A partir da leitura de pareceres de veto e de alguns livros da autora identificamos os elementos que justificaram a acusação da quebra dos códigos exigidos pela lei de censura prévia. Tais representações históricas e ficcionais fornecem a possibilidade de repensar as combinações entre o controle da produção literária e as repressões institucionais através das táticas de resistência de Cassandra Rios frente às proibições. Assim, destaco a existência de uma espécie de “tradição de censura” aos comportamentos tidos como imorais representados em obras literárias como motivação do “surto censório” que na década de 1970 tentou conter a difusão da pornografia.

A feitura desta análise inspirou-se na “tradição” dos debates promovidos pela Nova História Cultural e pela História Política. A Nova História tornou-se um terreno fértil para os historiadores que buscavam ampliar os domínios da produção historiográfica. Assim, neste movimento historiográfico algumas questões teórico-metodológicas herdadas das primeiras gerações dos Annales passam a ser atualizadas e a historiografia francesa, capitaneada por Jacques Le Goff, insere novos temas e objetos de pesquisa que atendam a demanda do mundo em transformação na década de 1970. No bojos das mudanças estavam as relações de poder e políticas, urgia uma redefinição do campo de modo que a História Política rompesse com a antiga produção que a ligava às análises do econômico. Pode-se dizer, portanto, que os estudos sobre questões políticas abordadas no interior das Escolas dos Annales promovem o chamado “retorno da História Política”. A partir de então, as análises dos historiadores ligados à corrente francesa interpunham as relações sociais e políticas no âmbito econômico, sem, contudo, deixar de privilegiar os aspectos das representações das mentalidades da manutenção de um tipo de memórias sociais dos indivíduos e de suas instituições. (página 12)

Por acreditar que tais pressupostos teórico-metodológicos da História Cultural ² oferecem suporte para pesquisas que se distanciam das interpretações mais tradicionais do político, sem estabelecer rígidas fronteiras, selecionei como objeto de pesquisa Cassandra Rios e a censura de sua escrita erótica nas décadas de 1960 e 1970. Não obstante, sua própria identificação como moralista, a obra de Rios recebeu a alcunha de pornográfica e sua produção foi censurada. Após a sanção do Ato Institucional Nº 5, houve também a regulamentação do Decreto-lei 1.077/70, sancionado em 26 de janeiro de 1970, estas medidas legitimaram a ação repressiva do Estado contra as produções literárias (REIMÂO, 2011). Era o governo militar “com punhos de ferro”, operando com rigor contra as editoras de revistas e de livros que tratassem de erotismo.

Cassandra Rios (1932-2002) é considerada a pioneira da literatura lésbica no Brasil. Escreve em fins da década de 1940 à década de 1980. Aos 16 anos escreve seu primeiro romance intitulado Volúpia do pecado. Esta escritora brasileira figura como uma das personagens mais enigmática do cenário literário brasileiro, pois, entre as décadas de 1960 e 1970, consegue atingir níveis de vendagem surpreendentes para o período ³. Apresentada como a escritora nacional mais lida no Brasil nesse período, possui mais de 40 publicações, a exemplo de Carne em delírio (1955), O bruxo espanhol (1959), Tara (1967), Veneno (1968), A borboleta branca (1968), Ariella, a paranóica (1969), A serpente e a flor (1972), Marcella (1975), Censura (1977), O prazer de pecar (1979) e Eu sou uma lésbica (1984). À 8 de março de 2002, no hospital Santa Helena, em São Paulo, Cassandra Rios vem a óbito vítima de um câncer em estado terminal.

Com problemas financeiros devido a sua relação conflituosa com os órgãos de censura e durante a sua luta contra a doença, a autora lançou a sua autobiografia Mezzamaro, flores e cassis: o pecado de Cassandra (2002). Nela, Rios narra a sua trajetória, informa-nos sobre a repercussão de seus escritos e de sua própria imagem enquanto figura pública.

O interesse em estudar a trajetória e os embates de Cassandra Rios foi decorrente de inquietações e questionamentos surgidos em 2011 nos primeiros contatos estabelecidos com o objeto desta pesquisa. Durante o processo de revisão bibliográfica pude observar que existem alguns pesquisadores examinando e interrogando a obra da autora supracitada. Estes trabalhos são importantes, na medida em que, apesar da ênfase dada ao caráter transgressor de sua escrita, as análises tratam de questões relevantes para a pesquisa histórica no campo da construção identitária. Estes estudos procuram mapear a produção da autora identificando as formas de representação do real, analisam a formação e transformação dos conceitos e categorias aplicadas ao gênero e a sexualidade como o sexo, o corpo, o prazer e a homoafetividade.

As obras de Rios foram criticadas pela elite intelectualizada salvo algumas personalidades que a partir de fins da década de 1970 se posicionam favoráveis a autora. Uma escritora que nunca esteve entre os grandes nomes da literatura nacional, não chegou se quer a concorrer a membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), tão pouco os “Imortais” dispensaram alguma crítica aos seus escritos. Todavia, apesar do desprezo dessa elite intelectual que a rechaçava, seus livros eram cada vez mais lidos, mesmo que as escondidas e, em 1980, teve a obra Ariella, a paranóica, adaptada para o cinema sob o título de Ariella e dirigido por John Herbert 8.

 

8 Outros romances da autora adaptados para o cinema são: Tessa, a gata e Ariella, ambos dirigidos por John Herbert. Outro romance adaptado para o cinema foi A mulher, serpente e a flor - com roteiro de Benedito Ruy Barbosa e dirigido por

J. Marreco. Fonte Acervo e Pesquisa; Biografia de Mulheres Disponível:<http://www.mulher500.org.com.br/acervo/biografia.detalhesasp?cod=893>. Acessado em 15.set. 2022.

        Num primeiro momento, esta pesquisa havia sido pensada com fins de traçar um paralelo entre a sexualidade e a “imoralidade” presentes nas obras de Cassandra Rios, sem, contudo, objetivar traçar apenas o perfil de suas personagens. Para sua execução havia a necessidade de compreender as transformações sociais e culturais vivenciadas em meio a diversos conflitos sociais no Brasil da segunda metade do século XX, em especial, no campo das produções culturais e seus desdobramentos no campo jurídico a partir da implementação do AI-5.

Nesse contexto, embora o objetivo da pesquisa não fosse estudar a Ditadura, se fez importante sublinhar questões acerca da condição política, social e cultural do Brasil, visto que é nessa conjuntura que há o aumento das publicações de Cassandra Rios e a atuação incisiva da SCDP (Serviço de Censura de Diversões Públicas) e da DCDP (Divisão de Censura de Diversões Públicas).

As análises foram construindo um novo traçado. A questão da moralidade e da transgressão de Cassandra Rios se fez cada vez mais eloqüente na documentação selecionada. A experiência de 8 de julho no Arquivo Nacional, em Brasília, realizada em agosto de 2013, com fins de consultar a documentação do Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP) colocou-me a frente de um universo documental, no qual pude recolher indícios do discurso do “outro” – da censura – que em alguns momentos confronta e em outros confirma hipóteses já trabalhadas por outros pesquisadores.

Tomo como fonte a escrita literária, por considerá-la um instrumento valioso que contribui com o saber histórico e auxilia no processo de construção da Cultura Histórica, estabelecendo uma interconexão entre os temas que atravessam a obra literária, no que tange diferentes aspectos da vida cotidiana – portanto, social – com outras fontes. Tal encargo se faz necessário para que algumas questões teórico-metodológicas sejam avaliadas com prudência, considerando a indeterminação da imposição de fronteiras rígidas para o “campo operatório” na construção de narrativas historiográficas.

Nesta abordagem elegi como fonte a obra ficcional Censura, minha luta, meu amor (1977) que, nas palavras da autora (1977, p.27), essa obra teria “a finalidade e a intenção de expressar meu (seu) pensamento neste momento; nesta situação, talvez sim uma réplica ou de tudo ressaltem perguntas muito sérias sobre artista-arte-público-Censura”. O livro não se caracterizaria enquanto uma autobiografia, nem tão pouco podemos dizer que seria uma produção contestatória como algumas canções compostas no período.

No entanto, por se tratar de uma obra confessional torna-se emblemática, nela a autora aponta indícios dos mecanismos de censura, de suas obras mais emblemáticas e as formas de perseguição a um tipo de escrita literária durante as décadas de 1960 a 1970, esta obra se coloca como uma fonte rica para esta pesquisa.


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