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Caio Pego







           

Cada pessoa é um abismo. Dá vertigem olhar dentro delas.

Sigmund Freud







Pequenas bolhas de som explodiam
sem choque contra seus ouvidos,
nota após nota, até se formar também
por dentro aquela melodia
tão remota e lenta que parecia vir
mais da margem, mas do fundo









            - Às vezes, tenho a impressão de que trago um abismo profundo dentro de mim – disse Caio, em mergulho reflexivo.
            - A parte mais profunda das águas não resiste como durante o dia, mas o envolve amoroso e ele sente nos lábios (...) Este era o mistério que Caio Pego procurava possuir como a uma mulher.
            - Como pensar em outra coisa, se o oceano em alguns pontos do globo, chegava a atingir mais de 10.000 metros de profundidade?
            Se não consigo medir a profundidade do oceano dentro de mim?
            - Será que alcança 10.000 metros de profundidade?
            Quanto mais procuro encontrar-me, mais me perco!
            Aconteceu naquele dia, naquele horário, um dia ao menor movimento, milhares de demônios se libertariam. Era preciso tomar cuidado, procurar distrair-se, como aconselhava a mulher.
            Como se estivesse com a cabeça inteira dentro do poço e alguém começasse a tocar acordeão na beira do rio. Pequenas bolhas de som explodiam sem choque contra seus ouvidos, nota após nota, até se formar também por dentro aquela melodia tão remota e lenta que parecia vir mais da margem, mas do fundo. Onde haveria quem sabe pedras verdes de limo, peixes coloridos, conchas, estranhos vegetais entrelaçados. Movimentando cada membro ao som de cada nota, ele tentou mergulhar em direção à areia clara do fundo. Sabia a origem de cada gesto a brotar de um centro como que desperto pela nota musical e assim, musicado, o movimento irradiava-se através dos músculos, espalhando-se sem pressa na superfície da pele até atingir as pontas dos dedos que agora movia, abrindo e afastando leve a água para mergulhar. Mas ao invés de afundar, peixe, de repente foi içado para cima, para fora, para uma penumbra cheia de contornos onde divisava vagamente qualquer coisa como as costas de um homem grande sentado.
            As ondas rebentavam ao meu redor. O que me aconteceria se estivesse justamente sob o ponto de ruptura de uma massa líquida? Impotente, mas confiante na flexibilidade e desenvoltura dos braços e pernas, adormeci desejando uma noite sem sonhos. Foi uma noite de pesadelos. Tinha a impressão de que a água subia ao meu redor, de que invadia tudo. Comecei a me debater. Nem havia sequer um barco sobre mim! Começo a nadar. Nado com mais força morto de angústia, acordo, o apartamento está totalmente submerso. Eu percebo que uma onda acaba de rebentar exatamente sobre mim. É preciso tirar a água a qualquer preço. Apenas os poderosos flutuadores de borracha continuam a flutuar e, por todo lado só se vê o mar; o navio do destino continua imperturbavelmente sua rota, como um destroço. Mas eu não tenho o direito, não tenho tempo de deixar desencorajar. Quase instintivamente começo a tirar a água primeiro com as duas mãos, depois com o meu chapéu: instrumento absurdo para esse trabalho impossível. Seria preciso tirar a água bem depressa entre as ondas maiores, para que o navio do destino alijado, emergisse suficientemente. Mesmo munido de um verdadeiro vertedouro, ainda seria necessário manter uma cadência em si mesma extenuante: Cada onda importante que nos atingisse provocaria um grande choque sobre a parte traseira e, imediatamente, o oceano rebentaria novamente tornando inútil, irrisório, desesperador, o trabalho dos dez ou quinze minutos precedentes. Eu próprio tive muito trabalho para compreender como, o náufrago sempre será mais teimoso do que o mar.
            Ficou imóvel e depois, em desafio, moveu duas vezes a caída e se aprofundou verticalmente no seu mundo espesso e sinistro. Exultante e já sem fôlego, o mergulhador encolheu-se, atira as pernas para cima e foi atrás.
            Estava parado, imóvel, parecia dormir. Apenas a boca escancarada se abria e fechava, como se murmurasse. Raios de luz se cruzavam frouxos ao seu redor. Deslizavam macios e nervosos como uma língua no muco do mar. Descia direto para o fundo, movendo os braços e os pés com o vigor cadenciado de quem sabe que há de chegar. Seus cabelos se abriam como nenúfares e os olhos por detrás do vidro tinham a limpidez das águas-vivas. Que veriam, esses olhos, quando o corpo chegasse ao seu destino? Que descobririam eles na tinta negra do fundo quando as mãos se enterrassem na argila e os ombros se esfolassem na aspereza da pedra? Que momentos de evasão e grandeza viveria o mergulhador, antes que seu peito se oprimisse e estalasse ao peso da água, e o vermelho do sangue a ela se misturasse? Seria um breve instante, o seu tempo de reserva para o regresso, e que ele perderia, fascinado, agarrando-se ao limo das pedras entre caranguejos milenares. Mas seria o bastante para encontrar no fundo do oceano e de si mesmo os primeiros sinais da eternidade.
            Quantos metros teria descido? Lá embaixo via a massa escura das algas e das pedras a acenar para ele. A profundeza jamais atingida de seu mistério. Parecia haver uma caverna onde pontos luminosos se acendiam na escuridão como se do interior das pedras outro sol, sol de cristal ou diamante, fosse nascer para o mundo submarino. A pressão nos ouvidos era já insuportável e não se aguentaria sem respirar senão o tempo necessário para subir. Seu peito se encolhia, agrilhoado pela ânsia de ar que o percorria num espasmo e pensou ainda que a um homem, ou melhor, a um mergulhador, a um verdadeiro mergulhador, aquele momento era o mais importante da vida e um segundo bastava para decifrá-lo. Depois, voltou-se como um peixe e em movimentos rápidos, a agitar os braços e as pernas com terror, ganhou vertiginosamente a superfície. O outro o viu saltar à flor d´água como um delfim, a ponta do arpão agitando-se no ar, enquanto ele respirava, ressuscitado.
            Essa revelação seria a verdade ou uma reflexão. Estava falando apenas como mergulhador.
            - Estou entre dois mundos; não me sinto à vontade em nenhum dos dois e por isso tenho um pouco de dificuldade. Vocês, adoradores da estética e da beleza, porém, que me dizem ser eu fleumático e sem saudades, deviam imaginar um dom artístico tão profundo e tão do princípio e do destino, que nenhuma saudade lhe pareça ser mais doce e digna de ser sentida do que aquela pelas delícias da trivialidade.
            Enquanto reflito, o mar murmura até aqui e eu fecho os olhos. Olho para um mundo inato, quimérico, mitológico e consumista, que quer ser ordenado e fútil; olho para um formigar de sombras com aspecto humano que acenam para mim, a fim de que as esconjure e liberte: sombras trágicas e cômicas e as duas coisas ao mesmo tempo - e a estas sou muito dedicado.










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