O
presente trabalho procura realizar uma abordagem analítica, tendo como destaque
a obra Uma vida em segredo (1964) de Autran
Dourado, o estudo concentra-se em desvendar nuances da obra do autor
principalmente no que se refere aos conflitos vivenciados pela personagem
Biela.
É
relevante observar que tal obra dialoga com o Modernismo literário brasileiro, configura
um narrador masculino que propõem revelar a história ou vida de uma personagem excluída.
O narrador apresenta a personagem exigindo dela um padrão de aceitação pela sociedade,
e ela a princípio se submete as novas exigências que lhe são impostas. Essa submissão
surge através da utilização de agentes externos, como as roupas, produzindo,
dessa maneira aparência diferente. A personagem através dessa mudança passara a
ser incluída nessa sociedade.
Trataremos
de abordar acerca da literatura autraniana,
expondo algumas perspectivas acerca de suas narrativas. Destacaremos a própria
opinião de Autran Dourado sobre a
escrita e a leitura de uma maneira geral.
Em
um segundo momento, faremos a análise da obra Uma vida em segredo,
abordando a vida da personagem principal, desde o primeiro capítulo até o
último. Os capítulos foram divididos mediante as perspectivas temáticas que
cada um tratava: capítulo 1 - A chegada de Biela; capítulo 2 – Adaptação de
Biela a nova vida; capítulo 3 – O frustrado noivado; capítulo 4 – Período de
mudanças; capítulo 5 – Encontro com Vismundo; capítulo 6 – Doença e morte de
Biela.
Esse
trabalho intenciona discutir sobre a trajetória de Biela, tomando como ponto de
partida a construção da sua identidade no decorrer do romance, o que permite
esclarecermos cada mudança vivenciada pela personagem e a descoberta do segredo
que nem mesmo Biela tem consciência que existe.
Autran Dourado escrevia
como se estivesse esculpindo uma obra de arte”. Desta maneira pode se
assemelhar a escritores importantes como Machado de Assis e a um Gustave Flaubert.
Trazendo
um panorama mais preciso das características dos textos deste escritor, podemos
destacar uma ficção intimista e uma prática vanguardista experimental muito
comum a de escritores como João Cabral de Mello Neto e João Guimarães Rosa. A
ficção confeccionada por Autran é uma
penetração psicológica. Sua narrativa move-se à força de monólogos interiores.
Que se sucedem e se combinam em estilo indireto livre até acabarem abraçando o
corpo todo do romance, sem que haja, por isso, alterações nos traços
propriamente verbais da escritura. O que há é uma redução dos vários universos
pessoais à corrente de consciência, a qual, dadas às semelhanças de linguagem
dos sujeitos que monologam, assume uma fácies transindividual. Assim,
embora a matéria pré-literária de Autran Dourado seja a memória e o sentimento,
a sua prosa afasta-se dos módulos intimistas que marcavam o romance psicológico
tradicional.
O
tom intimista apresentado pelo autor suas ficções foi comparado com o de
escritores como Cornélio Pena e Lúcio Cardoso, apesar de se diferenciarem em
outros aspectos. Essa particularidade em comum entre os escritores se dá devido
à temática que reflete o estado trágico e decadente da família patriarcal
mineira apresentada por Autran em
seus textos. O escritor também se assemelha a Clarice Lispector quanto à
construção de alguns personagens, ambos trazem para narração indivíduos
atormentados, excluídos socialmente, solitários, contudo os cenários produzidos
por Autran Dourado e Clarice
divergem, o primeiro apresenta o interior mineiro e a segunda destaca a cidade.
Na
narrativa de Autran nada acontece por acaso tudo tem uma razão de ser na
narrativa desse autor, onde destaco: em sua forma peculiar de construir
narrativas, apresenta ao leitor, mais do que simples histórias, enredos plenos
de significados. Em seus romances e contos, tudo tem razão de ser, desde o nome
dos personagens até o espaço onde se situam. Objetos e ambientes são
apresentados como peças de enigmas ao leitor, à medida que ele penetra no
texto. Apesar do alto grau de complexidade de seus romances, sua linguagem é
leve e os discursos e os diálogos destacam o caráter oral, o jeito de falar do
brasileiro e, em especial, do povo de Minas Gerais.
O
escritor se preocupava em escrever textos nos quais os leitores pudessem reconhecer
a produção enquanto arte. Para Dourado (2009) a escrita está relacionada à sua visão
sobre a importância do texto literário e a formação cultural dos escritores.
Iser (1996, p.50) traz uma reflexão contundente acerca da obra literária, expõe
que a “obra literária se realiza na
convergência do texto com o leitor; a obra tem forçosamente um caráter virtual,
pois não pode ser reduzida nem à realidade do texto, nem às disposições
caracterizadoras do leitor.” Em relação às obras literárias de Autran
percebemos claramente o elo entre o leitor e texto, através de uma leitura que
possibilita uma participação efetiva do leitor. Essa participação do leitor
para a construção do sentido do texto reitera o que Iser (1996) já propunha
quanto à leitura dos textos literários. Declarando que essa leitura ativa
processos de realização de sentido. A qualidade estética dos textos se encontra
na estrutura de realização, “pois sem a participação do leitor não se constitui
o sentido”.
Argumento
que quando acontece a leitura de um texto a maneira como esse texto se
constitui é a mesma para todos os leitores; é a relação com o sentido que, num
segundo momento, explica a parte subjetiva da recepção. Essa ideia dialoga
diretamente com as concepções trazidas por Iser, o leitor incorpora as
orientações internas do texto para que deste modo o mesmo seja recebido.
Dentro
deste raciocínio abordo uma concepção que tem sido reforçada que é o papel da leitura,
ou melhor, do leitor, na construção da personagem e do texto, vista como
resultado da interação entre autor, mensagem e leitor.
Autran
Dourado (2009, p.33) tinha uma grande preocupação com os textos literários que
estavam sendo produzidos, defende o cuidado com linguagem e crítica algumas produções
voltadas para o mercado, declarando que essa “literatura” é “matéria digestiva, passatempo de pessoas não muito
exigentes”. Quanto às percepções acerca do autor, exponho que o autor pode
ser percebido de duas formas: é tanto a instância narrativa que preside à
construção da obra quanto à instância intelectual que, por intermédio do texto,
se esforça por transmitir uma mensagem. Essa ideia fortalece a concepção que Autran
tem acerca da escrita literária, traduzindo-a como um ato de sedução e
encantamento, o escritor utiliza técnicas como o suspense, a recorrência e a
montagem, a linguagem atrativa repleta de expressões populares, tudo isso na
intenção de atrair o leitor.
Coloco
que a escrita autraniana traz acima de tudo uma tentativa de diálogo não apenas
com o leitor, mas também com outros textos: o texto de Autran configura uma
espécie de Babel literária de ecos e vozes que não se silenciam, que se
digladiam para se fazer ouvir. Essas sombras pairam a propósito de tudo e de
nada, são fragmentos de frases, uma infinidade de personagens que surgem mais
ou menos cristalizadas, momentos, lugares-comuns.
Na
escrita autraniana fica também
perceptivo o encontro que o leitor acaba tendo consigo mesmo, pois é na leitura
que o leitor procura buscar, através de seus conhecimentos e opiniões, o sentido
que o texto transmite. Existe de fato um nível de leitura em que, por meio de
certas cenas, o leitor reencontra uma imagem de seus próprios fantasmas”. Na
concepção de Jouve, “o leitor que é lido
pelo romance”.
Análise
da obra
Inicialmente,
torna-se interessante expor um breve resumo sobre o romance, esclarecendo alguns
pormenores da narrativa. A obra conta a história da roceira prima Biela que,
após a morte do pai, vai morar com seu primo Conrado e a família dele. Embora
eles morem no interior de Minas Gerais (nas primeiras décadas do século), ainda
assim são demasiado civilizados e refinados para essa prima bisonha, que só se
sente bem na cozinha, com os criados, e que tem medo até de sair na rua. Ao
longo dos anos, a cidade e a família vão se acostumando ao jeito de Biela,
sempre “tão boazinha”, mas vivendo no seu mundinho particular, irredutível a
qualquer tentativa de mudança, principalmente depois de um frustrado noivado,
arranjado por Constança, esposa do primo Conrado. No final do romance, Biela acaba
morrendo, acontecimento esperado devido à trajetória na qual vivenciou.
A
princípio partirmos do título da obra. Os títulos das narrativas de Autran de
alguma maneira já predizem alguns acontecimentos das histórias, pois
possibilita falar de uma constante, ou de uma tendência, dir-se-ia que a
maioria dos títulos de Autran estabelece uma relação simbólica com o conteúdo
dos textos que identificam”. Em relação ao título Uma vida em segredo,
se imagina que a narrativa irá se concentrar em contar sobre a trajetória de
vida de um personagem e que o mesmo guarda ou tem algum segredo. Em Uma vida
em segredo a vida de Biela, que decorre duplamente em segredo: porque situa
predominantemente num espaço psicológico, ao qual os elementos da família de
Conrado não acendem; porque Biela escolheu colocar-se à margem da família,
retirando-se do convívio, ao transitar da sala e da parte da frente da casa para
os fundos, para a cozinha; do convívio com os da sua classe social para com os serviçais.
No
primeiro capítulo da obra, em que acontece a chegada de Biela, se constata que
ela não faz parte daquele ambiente, aqueles costumes e rotina não são hábitos
nos quais Biela vivenciasse. A personagem nesse primeiro momento lembra muito
do “Fundão”, lugar onde nasceu e viveu com seu pai até aquele dia, as
lembranças da roça ainda eram intensas, Biela possuía um passado, e este sempre
retornava em algum momento do romance.
E
os olhos cerrados, o corpo solto no espaço, começou a viver uma lembrança, a antiga
lembrança. E ouviu a cantiga mais bonita, mais mansa, mais feita das cores do
céu. Uma sensação assim tão boa, mais tão diferente, só de noite na roça, o riachinho
correndo, quando esticava o ouvido para ouvir o chuá-pá do mojolo: a água
enchendo o cocho, o silêncio, o ranger do cepo na tranqueta, o chuá da água, o barulho
chocho da Mao caindo no pilão quando se pilava arroz, mais duro quando se esfolava
milho, e tudo se repetia feito choro monótono e sem fim, o monjolo rangendo.
(DOURADO, 1964, p.33-4).
No
decorrer do segundo capítulo, percebemos o empenho de Biela de se adaptar à
nova vida, Constança mulher de Conrado, assume, nesse primeiro momento, um
papel de protetora e amiga, é ela que tenta encaixar Biela nessa nova
realidade, contudo todas as tentativas de Constança de tornar Biela uma “dama”
tornam-se frustradas. “Constança não se
continha, falava com entusiasmo, animada de sair com Biela, transformá-la, de
abrir um novo mundo para a prima”, (DOURADO, 1964, p.43). Apesar de Biela
tentar se encaixar nesse meio, no seu interior ela sabia que aquele lugar não
era pra ela.
Dessa
maneira podemos enxergar a personagem principal como um ser “excluído” daquele
contexto, daquele “grupo social” que com o tempo acabou esquecendo dela. Afirmo
que “a personagem é um ser fictício (...) o que produz um paradoxo entre o ser
e o existir, pelo fato da palavra fictício encontrar-se em uma condição
de mera existência, que pode ser enquadrada na visão de mundo adâmico, visão
esta que sugere algo sem antecedentes, sem nome, sem historicidade, onde tudo
se resuma a palavra “isso”. Essa noção pode relacionar-se àquele oprimido que
vive na sociedade, local onde sua presença não passa de mera existência, ele
não faz falta para maioria daqueles que fazem parte da sua convivência. Porém
essa personagem acaba se reconhecendo em um outro grupo do qual se sente confortável.
Encaro essa exclusão da personagem da seguinte maneira: assim é que o narrador
produz a verossimilhança existente entre essa personagem e o oprimido
socialmente, criando com isso uma semelhança com a realidade, pois tal como
exemplifica a obra, atualmente muitos são os excluídos que não faz falta a ninguém,
possuindo uma situação de pequena existência. Dessa forma é que os seres (os
intelectuais) se colocam no direito de poder falar pelos existentes (os
excluídos), elaborando um discurso que representa toda essa exclusão.
O
terceiro capítulo basicamente retoma essa discussão acerca da adaptação de
Biela a essa nova realidade. Observaremos um momento importante da narrativa,
que acontece quando Biela se vê pressionada a casar, o casamento acaba não
acontecendo o que de certo modo fortalece no íntimo de Biela a ideia de que ela
não se encaixa naquela situação que a impuseram. “Diante da insistência da prima, diante do olhar ansioso, Biela viu que
estava sem querer magoando prima Constança, precisava ser boa. Afinal, não era
isso que esperavam dela?”
O
quarto capítulo faz-se um momento importante da narrativa, Biela muda
drasticamente, enquanto nos primeiros capítulos ela tentou se acostumar com a
nova vida nesse Biela rompe com tudo aquilo que não lhe fazia bem e passa a
viver a seu modo, construindo a partir de então novas relações, refazendo toda
sua vida que fora perdida no tempo e resgatando velhos costumes que eram
habituais na roça. “Sem que ninguém
percebesse, sozinha prima Biela mudava. Prima Biela se transformava, ou melhor
– regredia a um ponto passado, voltava a um desenvolvimento natural que fora
interrompido independentemente de sua vontade, evoluía no seu próprio modo de
ser.” (DOURADO, 1964, p. 88).
A
vida de Biela parece mais autêntica, desde de que ela começou a viver da
maneira que lhe convinha, lhe fazia feliz. Nesse quinto capítulo há um
acontecimento que traz a vida da personagem uma alegria imensa, talvez o
momento mais feliz de Biela tenha sido justamente o momento em que ela encontrou
um cachorrinho abandonado na rua e faz dele seu grande companheiro, chama-o de
Vismundo. Essa relação torna-se muito especial, pois Vismundo tornou-se seu
amigo, eles brincavam juntos e estavam sempre unidos. “Prima Biela inventou um mundo só para os dois, Quando sozinhos é que
conversava com Vismundo.” (DOURADO, 1964, p.125). É possível perceber que
Biela se reconhece em Vismundo, ambos em algum momento foram excluídos, ficaram
a margem de um grupo social, porém foram “resgatados”, Vismundo pela compaixão
de Biela para com ele e Biela pela sua retomada de consciência, pela mudança
que acaba por si fazer dentro dela.
O
último capítulo mostra-se marcado pela doença e depois a morte de Biela, após
longa trajetória, tristezas, frustrações, decepções e poucas alegrias a
personagem termina o seu ciclo de vida. Realmente, um momento de despedida,
Biela foi tão fiel as suas raízes que até quando estava doente e a doença
avançava, ela se apegou aos hábitos da roça, achando que com plantas e
medicamentos caseiros iria ficar melhor. Mas, terminou tendo que ir ao
hospital, onde terminou morrendo. “O
último a se fundir no azul foi Vismundo, que ainda perseguia os derradeiros
pássaros do céu.” (DOURADO, 1964, p.133)
O
narrador nos surpreende com o desfecho que é aplicado, pois além de ir de
encontro com as nossas perspectivas, ainda finaliza com todas as possibilidades
de se crer em uma futura inclusão. Assim como ele mesmo propõe, num dado
momento, essa literatura se apresenta de forma a transmitir certa continuidade,
visando um futuro a personagem.
A
proposta nesse trabalho foi desenvolver estudos acerca da obra Uma vida em segredo,
tentamos mostrar desde as características da literatura de Autran Dourado, como
também uma análise da obra trazendo elementos importantes para discussão.
A
vasta produção ficcional de Autran Dourado, apesar de girar em torno de poucos temas,
nos surpreende por apresentar uma forma diferenciada para cada texto publicado.
Assim, a leitura do conjunto de sua ficção torna-se um percurso por um
labirinto que precisamos desvendar. A teia construída pelo autor exige do
leitor uma atenção redobrada.
Uma
leitura que conduz o leitor a imaginar um caminho possível para Biela, contudo há
sempre algo que impressiona e nos faz pensar: Por que aconteceu isso com Biela?
A personagem acaba sendo previsível em alguns momentos, mas é fascinante quando
ela nos surpreende. Não foi Biela que buscou seu destino, foi o próprio destino
que tratou de conduzi-la até o fim de sua história. E esse é o grande mérito de
Uma vida em segredo: não há nada excessivamente dramático,
piegas, patético ou trágico no destino de Biela; ela simboliza alguém que foi
sendo apagada pela história, pelo progresso, pela urbanização, mas que mesmo
diante dessa sina manteve sua simplicidade.
Referências
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2007. Artigo publicado nos ANAIS DO III CELLMS, IV EPGL e I EPPGL –
UEMS-Dourados. 08 a 10 de outubro de 2007
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Marcio da Silva. As influências do trágico nos romances contemporâneos Ópera
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