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Humor na realidade mascarada

 

Os velhos tinham tentado falar com os civilizados uma vez, estavam desarmados e traziam crianças no colo. Os civilizados não quiseram ser amansados e apontaram suas espingardas e não deixaram um só velho com vida, apenas as crianças, que ficaram chorando e depois correram para a maloca onde contaram o que tinha acontecido.

( Mad Maria, Márcio Souza )

A perspectiva do índio face ao colonizador, o homem amazônico diante de sua história – esquecida ou mistificada pela cultura oficial – despontam fortes na obra de Márcio Souza. Com a força da sátira, do riso, até do deboche. Mas, também, com a força da pesquisa documental e histórica com base para desvendar o passado e compreender o presente. Passando ao largo das versões oficiais e procurando algumas versões desprezadas pelos manuais, Márcio compõe um quadro caricato e terrível da Amazônia, como parte integrante de um Brasil real, também caricato e terrível. A Amazônia e sua história, palco de dois de seus romances, é também levada à cena em seus textos para teatro. As Folias do Látex, Tem Piranha no Pirarucu e outros. Debochado, lançando mão do Vaudeville como expressão mais completa do passado e do presente da região, Márcio não poupa ninguém de sua crítica arguta. Uma crítica que também se estende a ensaios sobre teatro, cinema, cultura e vida amazonense. Para que não reste dúvida, Márcio faz da literatura uma arma cultural e política bastante aguda, dirigida contra opressores e elites do país.

A única forma de se enfrentar a realidade fantasiada de séria, é a autonomia relativa dos quadros, ocorre uma desestruturação do corpo do texto. De forma deliberadamente fragmentária, aparentemente desconexo e fotográfico, como se os personagens, estivessem repetindo, na forma, o comportamento irresponsável e errático que a história desempenhou na região. Uma forma sapeca de narrar um evento.

De tamanha desmoralização humana não sobrevém a tristeza, mas o riso solto, porque Márcio Souza preferiu enfrentar essa sarabanda armado de humor. Graças a essa escolha que espanta o pessimismo e a melancolia, Márcio Souza comprovou que reflexão crítica não significa, necessariamente, jeito enfezado e que o riso não é sinônimo de leviandade. Que, em outras palavras, seriedade intelectual não se confunde com roupinha de Dom Casmurro.

Saga do anti-herói

O surgimento de “Galvez, Imperador do Acre” (1976), quando vivíamos os rescaldos de tempos bem mais repressivos, desafogou um bocado o ambiente, dissipou um pouco do pessimismo reinante, mas criou, por outro lado, a expectativa, incômoda para o autor, de que sua conduta posterior deveria ser necessariamente cômica. O livro despertou forte reação adversa nos meios oficiais amazonenses, que viram nessa narrativa uma forma injusta de revelar a realidade local.

De fato, Galvez, pouco ou nada compactua com a mitificação corrente daquela região, habituada apenas a receber elogios, quando não assombro diante do indecifrável.

Este primeiro romance de Márcio Souza conta “a vida e a prodigiosa aventura de dom Luiz Galvez Rodrigues de Aria, nas fabulosas capitais amazônicas e a burlesca conquista do Território Acreano”. Se impiedade e ironia permeiam a história não cabem elas ao narrador, mas aos fatos verídicos e históricos, em boa hora relembrados.

Aventureiro de origem espanhola, Luiz Galvez se vê obrigado a fugir de Belém para Manaus, depois de participar de conspiração para anexar o Acre ao Brasil. Em Manaus, reata suas ligações com alguns dos conspiradores. Começam os preparativos. Artistas, loucos, prostitutas, mercenários, bêbados, visionários e ambiciosos compõem a tropa recrutada que um dia ataca e derrota os bolivianos. Cria-se, então, o Estado Independente do Acre, tendo Galvez como seu chefe supremo, coroado numa cerimônia bonapartista.

Depois de algum tempo, orientados por mais um militar que se acreditava a última reserva moral, um bando de sediciosos depõe o governo espalhafatoso de Luiz Galvez. Termina, assim, em meio a orgias, porres e vômitos, a saga desse (anti) herói, que se reconhece um”pastiche da literatura em série, tão subsidiária e tão preenchedora do mundo”.

Prova desse estado de espírito são as notícias de jornal referentes ao lançamento de “A Expressão de Amazonense” em 1978. Em vários deles surpreende-se a informação de que este ensaio sobre a cultura amazônica moldava-se segundo o estilo humorístico de “Galvez”. Não é de se duvidar também de que alimentava essa suposição falsa a apresentação das peças de Márcio Souza para as platéias do sul.

Um autor iconoclasta, cínico, realista

Foi por causa dessa irreverência, dessa iconoclastia, dessa sem-cerimônia perante nossa História, que Galvez ganhou notoriedade tão rápida e deu tanta dor de cabeça ao seu autor. Quando de seu lançamento em 1976, através da Fundação Cultural do Amazonas, tentou-se a proibição do livro e não o obtiveram, porque já constava até do relatório anual do governador. Mas “conseguiram a demissão de doze pessoas, inclusive do superintendente da Fundação”. E, com isso, completa-se a informação de Moacir Amâncio, enterraram o programa que vinha sendo feito, mais os planos”. (“Maldito - Um livro causa grande confusão em Manaus”, Folha de S. Paulo, 22/3/1977).

Mas, por que esse romance de estréia incomodou tanto, a ponto de ter provocado a indignação de ilustres membros da Assembléia amazonense?

Porque dessacraliza a História, imprimindo-lhe uma feição de teatro de paróquia, cheio de improvisações e de remendos. É livro em que o mito cai por terra e o herói se vê pelado no meio da multidão. E, o que é pior, não fazendo muita questão de tapar as partes. Dom Luiz Galvez Rodrigues de Arias, incursionando pelas “fabulosas capitais amazônicas”, lembra mais um Renato Aragão lascivo do que um Tarcísio Meira: maculado e destemido.

Cínico ou realista, Márcio Souza interessa-se pelas atitudes humanas concretas, pelas motivações aparentemente irrelevantes que acabam por compor o grande mosaico da História. Seus personagens não se movimentam impelidos por grandes ideais, exceção feita à freira Joana do Galvez ou do médico Finnegan do Mad Maria. Seus gestos não têm aquela aura de nobreza que os cronistas oficiais insistem em proclamar, e porque vivem deslocados numa sociedade ainda em composição, essa gente não projeta nada para o futuro. Tudo é muito prosaico, pouco poético e as ideologias liquefazem-se numa boa cama.

Nesse mundo, a velocidade das ações é tamanha que não há lugar para ponderações éticas. O que importa é a conquista, a presa, a pressa e a posse territorial, sucedâneo do carnal. E ao encerrar as últimas ações num clima de carnaval, Márcio Souza simplesmente formaliza e sistematiza os desencontros, as trapaças,os imprevistos e os qüiproquós. É o gran finale igualzinho ao das chanchadas da Atlântida. Muito som, muita luz, muita purpurina, muita ilusão. Depois de tanta desmistificação, nada mais coerente do que fechar com uma apoteose carnavalesca. Afinal, a função básica do carnaval é exatamente a de subverter hierarquias, de nivelar por baixo (na Marquês de Sapucaí mais por cima...) de relativizar o mundo grotescamente dividido. Suspende-se por momentos uma realidade social, supostamente respeitável, para mergulhar tudo no gozo.

Referências

Obras do autor

Galvez, Imperador do Acre, Fundação Cultural do Amazonas, Manaus, 1976. (Traduzido nos Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Espanha, Alemanha, Holanda e França. Editado em Portugal.)

A Expressão Amazonense – Do Colonialismo ao Neo-colonialismo, Alfa- Ômega, São Paulo, 1976.

Tem Piranha no Pirarucu e As Folias do Látex, Codecri, Rio de Janeiro, 1979.

Mad Maria, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980 (Traduzido nos Estados Unidos, Inglaterra e Espanha. Editado em Portugal.)

Matéria crítica

AMÂNCIO, Moacir. “Maldito – Um livro causa grande confusão em Manaus”. Folha de S. Paulo, 22/3/1977.

 


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