Como
escrevi em “Humor na realidade mascarada”,
procedeu mal a imprensa quando insistia em apresentar Márcio Souza como um
humorista apenas. Criou-se, assim, a imagem distorcida de um trabalho que
pretendia ser polifacetado e que foge do gênero expressivo único.
Talvez,
seja por esse motivo que se tenha sentido certa frustração quando do lançamento
de Operação Silêncio (1979). Nele,
não há lugar para brincadeiras, embora haja para a ironia. Ainda que pareça
exorcizante, Operação Silêncio trabalha
em cima das relações entre o intelectual e o Poder, entre a teoria e a
militância política, entre a Arte e o Estado, a partir de uma época conturbada
como o final dos anos 60. Romance de estrutura complexa e muito distante da
linearidade que marcava a produção anterior, esse livro desnorteia porque o
cineasta Paulo Conti, um dos personagens centrais, ora está no centro de São
Paulo, ora está em Paris, ou ainda no Peru. Ele se desdobra em homem envolvido
com uma, duas mulheres, quer fazer um grande filme histórico, sonha, e sonha, recorda
e tenta apreender o encanto e a dor evanescente dos encontros passados, do
afeto destruído, do sexo gozado em sobressalto.
Estruturado
em duas partes – a primeira composta de anotações curtas e encimadas por frases
da China maoísta, a segunda, um jorro contínuo de perplexidades políticas,
existenciais e cinematográficas -, Operação
Silêncio conta a história de um homem dividido, num país dividido, de uma
forma dividida. E o que aconteceu? Dividiu os leitores que queriam um narrador
só alegre e, obrigatoriamente, circunscrito aos temas amazônicos.
No
ano seguinte ao do lançamento de Operação
Silêncio, em 1980, Márcio Souza publicou Mad Maria, a história torturante dos que morreram para construir a
Estrada de Ferro Madeira – Mamoré e que, depois do sacrifício, ainda foram
caluniados, porque se convencionou dizer que nos trópicos não é possível viver.
Nesse
romance, dois espaços, unidos pela data de 1911, disputam a nossa atenção. Na
agradável moldura afrancesada de um Rio de Janeiro belle époque e eufórico com a reurbanização recente, engalfinham-se
capitalistas, políticos, militares, advogados e testas-de-ferro numa contenda
feroz, cujos reflexos longínquos, mas equivalentes, vão aparecer em Abunã, meio
caminho exato do traçado da Madeira – Mamoré, em plena selva. Por intermédio
desses planos narrativos paralelos, Márcio Souza distribui informações
generosas, ora sobre o avanço capitalista, ora sobre a resistência da floresta
à penetração do homem branco. A rigor, esses dois espaços iluminam-se
mutuamente, na medida em que Abunã é simples contrapartida, sem disfarce da
luta que já se travava nas elegantes salas, saletas e salões do Rio. No meio do
mato, pode-se ignorar as conveniências da etiqueta urbana. A junção desses dois
planos, no terço final do romance, só faz aumentar a rede de enganos e
inadaptações e, no geral, não altera em nada o destino dos personagens, uma vez
que voltam quase todos para seu ponto de partida, como um interminável ciclo
repetitivo.
Cuidadoso
na escolha do tema, Márcio Souza portou-se, no entanto, como um saudosista em
seu modo de tratá-lo. Seu narrador é muito informativo, paternalista e não foge
do didatismo, em muitos momentos. Além disso, os personagens já se apresentam
em retrato de corpo inteiro e maniqueizados, duplicidade que acaba se
esparramando pelo livro todo, regido basicamente pelo princípio da binariedade
e da simetria, inversa ou paralela.
Numa
construção neo-realista, perde o leitor mais familiarizado com a literatura
contemporânea, mas ganha aquele que mal começa a perder o medo de bibliotecas. E
parece ser esse o público que Márcio Souza quer atingir, num país que ainda não
formou massa satisfatória de consumidores de livro. Se o caminho é acertado ou
não, é problema que não nos cabe discutir aqui. O que cabe é lembrar que se
trata de uma escolha voluntária e que se encaixa plenamente em sua concepção de
arte funcional. Em entrevista concedida em 1982, o romancista disse que anda
preocupado em “descobrir a linguagem de
massa do romance brasileiro em fins do século XX” e, para isso, despiu-se
de seus preconceitos, começou a ler os estrangeiros que mais vendiam na época e
resolveu expropriar esta linguagem de escritores imperialistas como Irwing Wallace e Harold Robbins”** Como bom aluno de Oswald de Andrade, Márcio Souza
deglute-os antropofagicamente e, como admirador confesso de Lima Barreto, tinha
pressa, porque parece concordar com o uruguaio Mário Benedetti: “A exigência é urgente demais para correr o
risco de que a mensagem fique enroscada entre metáforas e não chegue a seu
destinatário natural” (“Temas y Problemas”).
Assim,
fica visível a luta contra a ignorância planificada pelos altos escalões, e a
arma utilizada por Márcio Souza era a literatura de combate naquela época.
Referências:
Obras do autor
Operação
Silêncio, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1979.
Mad
Maria, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980. (Traduzido nos Estados
Unidos, Inglaterra e Espanha. Editado em Portugal).
Matérias Criticas e/ou Noticiosas
BENEDETTI,
Mário. “Temas y Problemas”. In América Latina en su Literatura. (Org. César
Fernandez Moreno), México/Paris, Siglo XXI/UNESCO, 1972, PP. 354-371.
CAVERSAN,
Luiz Carlos. “A Realidade que Vem do Norte”. O Estado de S. Paulo, 10/1/1979.
__________ Os Caminhos da Ficção Nacional em Tempos de Abertura”. O Estado de S. Paulo, 20/7/1980. RIOS, Jefferson del. “O Canto Forte de Uma Geração sem Exorcismo”. Folha de S. Paulo, 16/9/1980.
_______________
“Um Roteiro Cinematográfico”. Leia Livros, nº 21, 15 fev./14 mar.1980.
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