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Ativista do corpo e dos sentidos










Obra do artista é marcada pela provocação










            É quase banal dizer que a vida de Pier Paolo Pasolini foi marcada por escândalos. Ele era mesmo uma revolução ambulante. Toda sua obra foi crítica, no sentido mais radical e provocativo do termo. Mas não só sua obra. Pasolini não atacava a sociedade que desprezava apenas em poema, dos, ensaios, romances e filmes. Fazia crítica com seu corpo, era uma espécie de ativista dos sentidos.
      Isso nunca foi muito tolerado. O Partido Comunista Italiano, do qual Pasolini fez parte durante alguns anos, nunca engoliu o fato de que ele, homossexual assumido, gostava de sair com os “ragazzi di vita”. Era um escândalo para a moral obreira do ex-PCI.
     Havia outras dissidências com o partidão italiano. Pasolini nunca deixava de repetir que Antonio Gramsci era influência mais importante do que Karl Marx. Mais: trazia para dentro do PCI um intolerável germe cristão, ainda que anárquico e primevo. Dizia que a parte da obra de Marx referente à religião era míope, não levava em conta a crença popular e deveria ser simplesmente jogada fora. Uma heresia para ortodoxos, dada à posição importante que a crítica à religião ocupa na obra de Marx. Pasolini era, também, mais atraído pelos camponeses e massas urbanas desordenadas que pelo proletariado organizado dos sindicatos.
        Foi discordando cada vez mais da política neo-stalinista imposta ao partido por Togliatti. Mas atacava, ainda, a extrema-esquerda, a quem chamava de neo-zhadnovista. Desiludia-se com as revoluções russa e cubana que, sempre na opinião dele, não souberam acrescentar ao mundo moderno valores diferentes. Não lhe bastava a abolição da propriedade privada e da burguesia como classe. Queria mais: valores novos, regenerados, vita nuova. Por isso, praticava uma escatologia do passado, saudosa da sociedade agrária. Que o chamem de passadista, mas não lhe tirem a razão de sua crítica da racionalidade burguesa.


Seus artigos, filmes e livros causavam furor


          Se com o PCI e seus supostos aliados da esquerda as relações eram tensas, imagine-se com a igreja. Pasolini professava um obscuro cristianismo primitivo que o fazia escarnecer dos figurões oficiais do Vaticano. Foi processado quando do lançamento de La Ricotta, e condenado a quatro meses de prisão com direito a sursis. A acusação: blasfêmia contra a religião do Estado.
           Sofreu, também, processo por obscenidade quando apareceu Teorema. Chocava muito a desagregação da família burguesa causada pelo aparecimento de um anjo que mantinha sexo com cada um dos moradores da casa. Depois de tocados sexualmente pelo visitante, o pai resolve doar a fábrica, e a mãe torna-se ninfomaníaca, tentando reencontrar em cada homem a experiência vivida com o estranho. O filho procura se recobrar via pintura, a filha entra em transe e a empregada volta para a sua aldeia, onde é venerada como santa.
            Em sua defesa, ele deu uma interpretação do filme: o mundo em que vivemos teria perdido toda a dimensão metafísica. O jovem eu chega representar a autenticidade. Ele não fala. Sua relação com os outros é puramente sexual. Quando o juiz lhe perguntou se o filme seria compreendido nessa esfera simbólica pelo grande público, Pasolini respondeu: “Se eu tivesse de me preocupar com a ignorância de parte do público, cometeria uma ação imoral com respeito à liberdade de expressão”. Teorema era tão ambivalente que foi premiado e, a seguir, condenado pelo Office Catholique Du Cinema.
          Mas não foi só com essas duas grandes instituições italianas – o Partido Comunista, na época, e a igreja, até hoje – que Pasolini se desentendeu. Teve problemas seguidos com a justiça comum. Seu romance Ragazzi di Vita (1955), “Meninos da Vida”, publicado em 1985, pela Editora Brasiliense, na coleção Circo de Letras, valeu ao autor um processo por ofensa à decência pública. O primeiro longa, Accatone (1961) – “Desajuste Social”, no Brasil - seria considerado “contrário à moral”. No começo dos anos 60, ele foi acusado de cumplicidade por ter embarcado em seu carro um jovem prostituto que havia furtado uma corrente de ouro de um transeunte. Um frentista de posto de gasolina, que tentara deter o ladrão, acusou o cineasta de havê-lo agredido.
           Seus artigos também causavam furor. Toda a série de textos publicada em jornal, e hoje reunida nos Escritos Corsários, era destinada à intervenção social – e, portanto, à polêmica. Os casos de processo são virtualmente inumeráveis. Entre eles, há um curioso: o processo por incitar militares à subversão do artigo publicado no semanário Lotta Continua. No texto, distribuído diretamente pelo autor e mais cinco diretores do jornal, Pasolini conclamava os soldados de baixa patente à rebelião.
        Pasolini era um agitador cultural, um equivalente italiano de Glauber Rocha e de Roberto Piva. É o tipo de personagem que fertiliza a sociedade com suas ideias e seu agudo senso de provocação. São intelectuais performáticos. Mas, claro, essa não é exatamente a opinião de quem se vê fustigado por esses profetas do caos. O descaso com que o processo contra seu assassino foi tratado pela justiça italiana, não disfarça o alívio da sociedade por se ver finalmente livre de Pasolini.








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