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Composição com muita dose de mãe

 



           Você colhe com carinho uma semente de rosa, sem distinção, sem preconceito. Coloca com cuidado no vaso refratário ao egoísmo e ao desespero. Fogo brando ou forte, porém, chama incessante. Acrescentem-se os seguintes ingredientes variáveis, por ordem de acontecimentos: duzentos e setenta dias de gloriosa, áspera e paciente espera, cada vez mais arcada ao peso leve do ventre dilatado. As dores do parto sem dor: imaginária invenção. O grito e o clarão da vida: a descoberta da criação: o milagre. A apreensão, a cisma, a dúvida, a certeza dos dez dedos e, mais dez, vinte; a placidez muda da placenta, que se despede cumprida a missão silenciosa.

            A primeira grande refeição da mistura fermentada; o mamilo dolorido; a primeira fome; a ânsia do contato do corpo que é seu corpo; as flores no vaso, o lençol branco, a cor dos olhos, a delicada moleira, a sinfonia maravilhosa e cansativa dos vagidos; as madrugadas acesas; as noites indormidas; os dias assustados; a camisa bordada, a manta, as fraldas: o incessante rodízio das fraldas, interminável; o regaço do colo, o balançar do berço; os livros de pediatria; as formidáveis teorias das comadres; antibióticos, as seculares dores-de-barriga; os chás sonolentos; o leite farto ou o leite seco e a mamadeira; os caldos, os rescaldos.

            A manchete assombrosa que alvoroça a família: ele engatinha! O monumental tombo da escada, o dedo na tomada, o pronto-socorro: os três famosos pontos na cabeça, tradição da raça; o controle da televisão quebrado em três pedaços, irrecuperável: uma graça!

            Impõe a essas coisas e a essa vida que te oferecerão como infância a sofreguidão da tua boca, a ousadia de teus olhos e a força de tuas mãos. Imprime a tudo que tocar a alegria. Você é apenas um nome e um número de registro. Ganha também uma estrela de fé e de esperança. Se acreditar em estrela, poderá buscá-la.

II

            O fim dos sapatinhos de lã, a primeira sandália, as lições de bem-comer só com colher, os passos, os percalços, os traços na parede que era limpa: as maravilhosas aptidões artísticas: borrões de tinta; as pequenas malcriações; as grandes malcriações; a bola na vidraça; as sílabas adivinhadas; as palavras não faladas, mas ouvidas; os pensamentos; a manha, a birra, os passeios na calçada; o vaivém do balanço, a gangorra, o monte de areia; essa sujeira venturosa da infância livre; a “van” da escola; o jardim, o cheeseburguer; as mil tranqueiras; a desordem; o tênis furado; a escova nunca usada; o par de brincos; os imensos pacotes de fotografias; a nota baixa, a nota alta; as boas e as más companhias; a pavorosa espera dos olhos abertos enquanto não ouve a chave na fechadura; as meninas do vizinho; os meninos do vizinho; os sustos da brecada do carro; os abraços, os beijos, dados e não dados; os carinhos não recebidos.

A sombra do futuro verdejante; o emprego onde ganha uma ninharia; a creche; o grupo escolar; o chamado na secretaria; as provas não semanais; mas de cada dia; o sonho; o pesadelo; as barras que se desmancham, a barra que fica cada vez mais pesada; o maço de cigarro; a mesada; as reclamações; a puberdade; a impertinência da adolescência, a apatia pela TPM da namoradinha; ficar ou namorar?; a chave do carro para uma volta no bairro, a camisinha escondida dentro de uma meia na gaveta; o novo personagem na família.

            Sua majestade; a estremeção; a liberdade; a porta batida com estrondo; a porta não fechada; a situação aparentemente sem saída; a ida; a volta; a partida; aquela exata inconsciência das arestas do mundo; a queda; a angústia; aquele prever que é quase um sentimento inato. A ingratidão e o perdão. Assim, misturando o suco, se no final ainda houver um sorriso, mesmo que sofrido, a mãe existe.


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