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A poética de Eunice Arruda

 

(Segunda Parte)

 A “noite” é uma referência constante nos poemas de Eunice Arruda. Contrariamente à poesia romântica, que enxergava na noite os mistérios, a morte, a evasão pela boêmia e a pos­sibilidade de transcendência, a poesia de que falamos aqui apresenta a noite como tristeza pela inércia, solidão, constatação da nulidade das buscas diárias, consciência da finitude do desejo. O título do seu primeiro livro assume, dessa forma, a condição matriz de sua poética, caracte­rizada por esses aspectos. O verso final das duas primeiras estrofes reforça o significado que a noite tem na sua obra: “Que solidão nesta noite fria”, “E a noite era tão fria”. Assim, a frieza noturna é extensão metafórica da ausência do movimento e da solidão, expressa também como “noite no coração”. É característica de sua poesia a fusão entre a paisagem externa, notadamente noturna, e seu universo íntimo.

Os versos curtos, como “em vão”, “sentiram”, “que fica”, são entrecortados pela imposi­ção de uma respiração e de silêncios, e promovem a atmosfera de reflexão íntima aberta pela palavra poética. As interrupções sintáticas captam os movimentos da subjetividade, marcados pela dissonância.

A mesma frieza da noite assola, em seus poemas, a frieza presente nas coisas endure­cidas, como o muro (figura recorrente em toda a obra arrudiana), a parede, o cimento, figuras claramente aproximadas pelo mesmo campo de significação. Metaforicamente, esses elemen­tos falam das limitações, dos desejos não vivenciados em plenitude, da felicidade impossível, do cotidiano infértil; mas apontam também para uma forma poética desprovida de excesso, crista­lizada pela palavra direta, sem intermediações, calcinada pela percepção imediata, como o que se lê no poema “Cimento-Armado”, do mesmo livro:

 

O cotidiano basta

Calçadas

asfaltos

desafogam o coração

 

Depois há a noite

A noite é mãe de

afagar cabelos onde

seus dedos são constante ausência

 

Sim

o cotidiano basta

Não tem importância

o que

não tenho

(2012, p. 20).


 

Toda a imagética explorada no poema leva à condição estéril do cotidiano, traduzida pelas “Calçadas”, pelos “asfaltos”, que “desafogam o coração”. A “noite”, na segunda estrofe, per­sonificada como “mãe”, sinaliza, em oposição, a ausência do afago, a solidão. A terceira estrofe, que pessoaliza a voz poética, dá o tom cortante refletido pela dureza do cotidiano e pelo silên­cio noturno, unindo o fora e o dentro.

A imersão da voz lírica na solidão leva, com frequência, a considerações poéticas sobre o próprio fazer-poético, abrindo espaço para uma metalinguagem que alimenta todas as obras de Eunice Arruda. Do seu segundo livro – O chão batido (1963) –, tomemos o poema “Da fina­lidade do trabalho”:

 

Não trago mensagem

na voz

 

Quando escrevo

é a vida que

exercito

para

que

tudo o que existia

em mim fique

escrito

 

Por isso não trago

mensagem na

voz

 

É missão de

quem escreve

apenas eternizar o que foi

breve

(2012, p. 36).

 

Ao dizer “Não trago mensagem / na voz”, a poeta rompe com a possibilidade de com­preender-se como porta-voz ou meio pelo qual se realizam verdades superiores; seu exercício poético não busca a captação do sentido maior da existência, mas aquilo “[...] que foi / breve”, ainda que haja uma relação intrínseca entre a brevidade e a eternidade. A ideia que se tinha na Antiguidade, e mesmo entre os românticos, da figura do poeta como um demiurgo – vate em missão profética entre os homens – não vale para a visão poética arrudiana.

O poeta, aqui, não é um mediador, mas é o próprio poema; o poema “se diz” nele. Na segunda estrofe, ao dizer “Quando escrevo / é a vida que / exercito”, a poeta aproxima o fazer poético da experiência vivida. Teríamos, assim, uma poesia-experiência, tessitura colhida na própria vida. A assonância em /i/, no trecho selecionado, referencia o espaço da subjetividade, da introspecção, associando a inspiração poética ao exercício da vida, do que resulta o registro do “[...] que foi / breve”. A captação da palavra se dá na sua própria condição imanente; a poesia eterniza o vivido, filtrado pelo aspecto central da sua poesia: a memória.

É característico da poesia de Arruda o final dos versos em sílabas átonas e sintatica­mente inconclusas, como nos versos “é a vida que”, “mensagem na”, “É missão de”, provocando cor­tes que, num primeiro momento, suspendem a respiração e encaminham a leitura para o enjam­bement. Essa desestruturação rítmico-sintática de versos curtos já aparecia na primeira fase modernista, nos chamados poemas-pílulas, poemas-síntese e mesmo nos poemas-piada, todos oswaldianos, mas também comuns, por exemplo, em Cassiano Ricardo. A geração concretista aprofunda tais aspectos, afirmando-se “[...] como antítese à vertente intimista e estetizante dos anos 40” e repropondo “[...] temas, formas e, não raro, atitudes peculiares ao Modernismo de 22 em sua fase mais polêmica e mais aderente às vanguardas européias” (BOSI, 2006, p. 476). A geração marginal dos anos 60 e 70 também se apropriaram da frouxidão das formas fixas e das formas mais concisas para expressar conteúdo social e político. No caso de Eunice Arruda e outros poetas contemporâneos, como a já citada Orides Fontela, esses aspectos estruturais distanciam-se dos temas explorados pelos modernistas e pelos marginais, tampouco dialogam com a proposta concretista. O minimalismo da linguagem, na obra da autora sobre a qual nos debruçamos aqui, justamente resgata a lírica essencial, metaforicamente dita por Staiger como “[...] uma ferida a sangrar dia a dia, para a qual não floresce na terra uma planta que a cure.” (STAIGER, 1997, p. 75).

 


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