(Segunda Parte)
Os versos curtos, como “em vão”, “sentiram”, “que
fica”, são entrecortados pela imposição de uma respiração e de silêncios, e
promovem a atmosfera de reflexão íntima aberta pela palavra poética. As
interrupções sintáticas captam os movimentos da subjetividade, marcados pela
dissonância.
A mesma frieza da noite assola, em seus poemas, a
frieza presente nas coisas endurecidas, como o muro (figura recorrente em toda
a obra arrudiana), a parede, o cimento, figuras claramente aproximadas pelo
mesmo campo de significação. Metaforicamente, esses elementos falam das
limitações, dos desejos não vivenciados em plenitude, da felicidade impossível,
do cotidiano infértil; mas apontam também para uma forma poética desprovida de
excesso, cristalizada pela palavra direta, sem intermediações, calcinada pela
percepção imediata, como o que se lê no poema “Cimento-Armado”, do mesmo livro:
O cotidiano basta
Calçadas
asfaltos
desafogam o coração
Depois há a noite
A noite é mãe de
afagar cabelos onde
seus dedos são constante
ausência
Sim
o cotidiano basta
Não tem importância
o que
não tenho
(2012, p. 20).
Toda a imagética explorada no poema leva à condição
estéril do cotidiano, traduzida pelas “Calçadas”, pelos “asfaltos”, que
“desafogam o coração”. A “noite”, na segunda estrofe, personificada como
“mãe”, sinaliza, em oposição, a ausência do afago, a solidão. A terceira
estrofe, que pessoaliza a voz poética, dá o tom cortante refletido pela dureza
do cotidiano e pelo silêncio noturno, unindo o fora e o dentro.
A imersão da voz lírica na solidão leva, com
frequência, a considerações poéticas sobre o próprio fazer-poético, abrindo
espaço para uma metalinguagem que alimenta todas as obras de Eunice Arruda. Do
seu segundo livro – O chão batido
(1963) –, tomemos o poema “Da finalidade
do trabalho”:
Não trago mensagem
na voz
Quando escrevo
é a vida que
exercito
para
que
tudo o que existia
em mim fique
escrito
Por isso não trago
mensagem na
voz
É missão de
quem escreve
apenas eternizar o que foi
breve
(2012, p. 36).
Ao dizer “Não
trago mensagem / na voz”, a poeta rompe com a possibilidade de compreender-se
como porta-voz ou meio pelo qual se realizam verdades superiores; seu exercício
poético não busca a captação do sentido maior da existência, mas aquilo “[...]
que foi / breve”, ainda que haja uma relação intrínseca entre a brevidade e a
eternidade. A ideia que se tinha na Antiguidade, e mesmo entre os românticos,
da figura do poeta como um demiurgo – vate em missão profética entre os homens
– não vale para a visão poética arrudiana.
O poeta, aqui, não é um mediador, mas é o próprio
poema; o poema “se diz” nele. Na segunda estrofe, ao dizer “Quando escrevo / é a vida que / exercito”,
a poeta aproxima o fazer poético da experiência vivida. Teríamos, assim, uma
poesia-experiência, tessitura colhida na própria vida. A assonância em /i/, no
trecho selecionado, referencia o espaço da subjetividade, da introspecção,
associando a inspiração poética ao exercício da vida, do que resulta o registro
do “[...] que foi / breve”. A captação da palavra se dá na sua própria condição
imanente; a poesia eterniza o vivido, filtrado pelo aspecto central da sua poesia:
a memória.
É característico da poesia de Arruda o final dos
versos em sílabas átonas e sintaticamente inconclusas, como nos versos “é a
vida que”, “mensagem na”, “É missão de”, provocando cortes que, num primeiro
momento, suspendem a respiração e encaminham a leitura para o enjambement.
Essa desestruturação rítmico-sintática de versos curtos já aparecia na primeira
fase modernista, nos chamados poemas-pílulas, poemas-síntese e mesmo nos
poemas-piada, todos oswaldianos, mas também comuns, por exemplo, em Cassiano
Ricardo. A geração concretista aprofunda tais aspectos, afirmando-se “[...]
como antítese à vertente intimista e estetizante dos anos 40” e repropondo
“[...] temas, formas e, não raro, atitudes peculiares ao Modernismo de 22 em
sua fase mais polêmica e mais aderente às vanguardas européias” (BOSI, 2006, p.
476). A geração marginal dos anos 60 e 70 também se apropriaram da frouxidão
das formas fixas e das formas mais concisas para expressar conteúdo social e
político. No caso de Eunice Arruda e outros
poetas contemporâneos, como a já citada Orides
Fontela, esses aspectos estruturais distanciam-se dos temas explorados
pelos modernistas e pelos marginais, tampouco dialogam com a proposta
concretista. O minimalismo da linguagem, na obra da autora sobre a qual nos
debruçamos aqui, justamente resgata a lírica essencial, metaforicamente dita
por Staiger como “[...] uma ferida a sangrar dia a dia, para a qual
não floresce na terra uma planta que a cure.” (STAIGER, 1997, p. 75).
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