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Poesia da solidão e da metalinguagem

 

(Primeira Parte)

 

Uma moça tímida, de andar de passos pequenos, olhos acesos, de palavras poucas e gestos amáveis representava aquele momento no início dos anos 60. Seu talento foi exaltado pelo editor Massao Ohno, pelos poetas Álvaro Alves de Faria, Leila Míccolis, pelo jornalista e professor de literatura Sérgio de Castro Pinto, que nos apresenta a poeta a partir de seu apartidarismo literário e sua despretensão de filiação vanguardística, na orelha direita do livro Poesia Reunida publicada em 2012.

Em 15 de novembro de 1960, ano em que Eunice Arruda publica seu livro de estréia, o poeta e jornalista Judas Isgorogota assim se refere ao livro e à poeta: “Publiquei os primeiros versos de Eunice Arruda [...] dava a impressão de ser apenas um gesto lírico de asa que sonha voar. Entanto, em breve, o gesto era voo, amplo, forte, decisivo.” (apud ARRUDA, 2012, p. 264). A obra referida É tempo de noite, publicada pela Massao Ohno – editora que publicava livros de jovens poetas – numa coleção denominada Antologia dos Novíssimos.

Eunice Carvalho de Arruda nasceu em Santa Rita do Passa Quatro, cidade pequena do interior de São Paulo, em 15 de agosto de 1939. Fez pós-graduação em Semiótica na PUC (1988), ganhou vários prêmios literários e ministrou cursos de criação poética na capital pau­lista. Pela sua atuação em projetos culturais voltados para a poesia na década de 90, recebeu o prêmio de Mérito Cultural pela União Brasileira de Escritores, do Rio de Janeiro, em 1997. Sua obra integrou, no total, 39 antologias, publicadas no Brasil e em outros países (Itália, França, Canadá, Portugal). Poetas que surgiram no mesmo período, como Leila Míccolis, Olga Savary e Renata Pallottini, e críticos de literatura como Nelly Novaes Coelho e Álvaro Alves de Faria, divulgaram textos de Arruda em antologias importantes que destacavam poetas contemporâneos.

Ao proferir, por ocasião da Antologia dos novíssimos, de 1961, “Dizer o que sou? Antes, não sei se é justo tocar a chaga aberta. Mesmo com os próprios dedos” (2012, p. 249), a poeta alude à poesia como campo aberto por onde transpassam as questões existenciais. Marcadamente lírica, sua obra dimensiona grandes temas universais, vazados na voz da mulher que observa o mundo, que sente também o peso da própria condição humana, que penetra nos recônditos da noite para dizer o que o silêncio lhe dita. Nessa trilha poética, Eunice Arruda não comunga do ideário de poesia marginal nem do visualismo da poesia concreta – ambos caros para a época –, embora tenha sido herdeira da tradição modernista que, desprovida de rigidez estrutural e de formas tradicionais, permitiu que a poesia encontrasse novos ritmos. Sobre a poesia desse período, vale destacar que o cenário que se descortina, e que se estende pelo mundo ocidental, é o de singu­laridades, em detrimento do sentimento de apoio coletivo. Desse estado de afirma­ções isoladas, surge o que a crítica normalmente chama de “multiplicidade de vozes” ou “pluralismos”. A década de 1980 corresponderia ao momento de ruptura com a própria ideia de ruptura, na medida em que reforça trajetórias artísticas individua­lizadas e autônomas.

Pretendo estabelecer algumas pos­síveis linhas de força da poesia contemporânea, embora sem a rigidez das classificações. Ao longo dos últimos trinta e cinco anos, a produção poética, antes marcada pela emergência de grupos e movimentos, dispersou-se num universo de individualida­des. Com destaque para temas que vão explicitações de problemáticas singulares a reflexões metafísicas e, com muita frequência, a considerações sobre o fazer poé­tico. Poucos textos representativos centrados em problemas sociais.

É tempo de noite (1960) traz a profundidade de Eunice Arruda e os aspectos que lhe serão marcantes em toda sua trajetória. Sua dicção poética já nasce plena no primeiro livro, sem que haja um sentido de progressão entre a primeira e a última obra. Chamam a atenção, desde o primeiro momento, os poemas curtos e os versos enxutos, causando a impressão de que a poeta diz muito com poucas palavras; há simplicidade no dizer, como se a poeta não usasse meias palavras, mas justamente a colocação direta dos termos flagra a metáfora que parecia indizível e o ritmo latente nos objetos próximos. Raramente a poeta constrói poemas longos, e quando o faz, conserva o tom austero da secura que corta qualquer possibilidade de adjetiva­ção excessiva ou prosaísmo solto. Daí para o haicai foi inevitável. Arruda publicou dois livros de haicais: o primeiro, em 2003, intitulado Há Estações, e o segundo, em 2008, intitulado Olhar, ambos fotografando, sob o olhar silencioso da poeta, os dias distribuídos nas estações do ano, o movimento das pessoas nas ruas, as árvores, a sala de onde olha pela janela.

Na lírica contemporânea foi/tem sido comum o fazer poético de pendor reflexivo, perto ou mesmo imerso no ontologismo, de valorização do silêncio, do mínimo dizente e da máxima tensão, com musicalidade altamente sugestiva e estilo fragmentário, como se a linguagem se dissesse. Tem destaque, nesse viés, a poeta paulista Orides Fontela, que teve sua primeira obra – Transposição – publicada em 1969. Porém, se em Orides a linguagem poética destrama a pala­vra para encontrar o ser existencial, em Arruda a questão existencial se apresenta na incomple­tude, na ausência do outro e na solidão sempre pressentida. Arruda está em consonância com certo viés da lírica contemporânea ao exercitar uma poesia mais enxuta, de versos e estrofes ligeiros, próximos do laconismo. Ao mesmo tempo, dialoga com aspectos caros da história da lírica, especialmente da lírica de autoria feminina, como a sensação do abandono, a percepção do vazio que é projetado nos objetos próximos, a constatação da solidão, a busca de um sen­tido projetado na relação com o outro, a finitude, a morte.

Vejamos o poema “Passos”, de É tempo de noite:

 

Nesta noite tão fria

ouço passos na calçada

Quem seria? Talvez alguém me busca

em vão

Que solidão nesta noite fria

Meus passos já foram buscas

anseios da ilusão

Como estes passos que ouço

sentiram

pesar a vida

e a noite no coração

E a noite era tão fria

Esses passos na calçada

bem sei – sempre existirão –

mas tenho dó da tristeza

que fica

quando eles se vão

(2012, p. 10).

 

Ainda que É tempo de noite tenha sido publicado quando a autora tinha 21 anos de idade, é possível entrever nos versos o olhar da mulher em plena maturidade, conhecedora da incompletude da condição humana e consciente da poesia enquanto registro da própria solidão. Per­cebi logo que Arruda seria uma voz representativa na geração de 60, dotada de voz simples, densa, um tanto áspera pela amargura, de esperança desalentada. Em consonância com gran­des vozes femininas da literatura, como Florbela Espanca e Mariana Alcoforado, Eunice Arruda expressa a dor pungente de quem percebe a impossibilidade de completude.

O poema “Passos”, transcrito acima, estabelece um paralelo entre o eu lírico – aquele que ouve – e os passos na calçada – o outro. Porém, ambos os lados se unificam na voz poé­tica, sugerindo que os passos sejam a correspondência do próprio poeta, em tempos distintos. Na primeira estrofe, a forma verbal se encontra na primeira pessoa (“ouço passos na calçada”), estabelecendo uma relação simultânea entre a voz poética e os passos que ouve; na segunda estrofe, a forma verbal aparece no passado (“Meus passos já foram buscas”), o que aproxima o eu lírico dos passos que ouve, numa relação de alteridade ou mesmo de simbiose; na terceira estrofe, a foram verbal vai para o futuro (“Esses passos na calçada / bem sei – sempre existirão –”), o que propõe uma continuidade ou, melhor dizendo, uma universalização da busca empreen­dida pelos passos. Assim, o eu lírico ouve os passos que um dia foram seus, assim como os pas­sos que ouve nessa noite estarão no seu lugar amanhã; o movimento de busca e a estaticidade da poeta ouvinte correspondem a duas faces de uma mesma moeda, a um tempo cíclico, de repe­tição. É tempo de noite é


uma espécie de canto silencioso e delicado, profundamente elegante, com palavras escolhidas no zelo de sua autora, que, afinal, haveria de marcar toda uma obra que se manteve sempre e decididamente envolvida a uma poesia colhida sempre nas frestas do sentimento, naquelas onde não chega o olhar comum, mas apenas o olhar atento de quem observa a vida renascer sempre.

 


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