Pular para o conteúdo principal

A vida que rodeia de forma concisa

 

(Terceira Parte)

 

Eunice Arruda é simplesmente poeta, e apenas poeta. Não há registros de que tenha deixado obras em prosa. Vocacionada para a lírica, a poeta traduz a experiência do homem em sentido universal, redimensionada na condição individual daquela que sente o mundo pelo seu olhar (des)encantado.

Em consonância com a liberdade estética e com a tensão lírica, Eunice Arruda partilha do gosto pelo nominalismo, que aproxima sua poesia da captação objetiva das coisas, a exemplo do que marcou a poesia modernista da segunda fase aparente em Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles. Desprovida de misticismo, a poeta vê-se como um depurador da experiên­cia cotidiana, limando seu olhar sobre o mundo na mesma medida em que afia as facas para a composição lírica, dita no poema “Observando - I”, de Os momentos (1981), da seguinte forma:

 

sim

as horas de trégua

 

Quando se afiam

as facas

(2012, p. 106).

 

A lâmina cortante das “facas” pode ser compreendida, aqui, em sua dupla função: por um lado o tempo da espera e da observação, ausente da luta empreendida pelo eu poético con­sigo mesmo, mas prenhe das batalhas no cerco de sua solidão; por outro lado, experiência de observação que antecede a criação poética, laboração interna para o construto textual, mar­cadamente gestado. No primeiro caso, experiência; no segundo, metalinguagem. A poesia de Eunice Arruda não transborda, nada sobra, tudo se assenta sob medida, com cautela e precisão; sua poesia projeta o que de essencial foi maturado pela aguda observação.

Nesse sentido, ao observar o prefácio do livro As pessoas, as palavras (2ª ed., 1984), afirmo:

Os versos breves, por vezes brevíssimos, indagam limites, de cada um, neste den­tro e neste fora.

E se são leves, por vezes desnudam sensorialismo forte, de carne e osso, que não des­mancha o seu tom de delicadeza despretensiosa, que veio se afirmando desde os anos 60, com sua primeira obra, É tempo de noite (1960) (apud ARRUDA, 2012, p. 268).

No livro Gabriel (1990), Arruda atinge a máxima concisão, com poemas sem título, o que sugere fluidez entre os textos, ligando a origem da palavra à origem do homem, o dizer da palavra poética ao dizer da própria vida. O primeiro poema (“Somos / palavras // O mundo está sendo escrito”) já associa o fazer-poético à experiência contingente, conforme dissemos ante­riormente, e aproxima a atividade poética da sagração enquanto acontecimento no tempo pre­sente. Tomemos o segundo poema:

 

Adão vê o mundo

pela primeira

vez

 

Como um poeta

 

Ocioso e lúcido

passeia no jardim

no Éden

Nomeia as coisas

 

Como um poeta

Sabe que não pode

comer o fruto

 

Como um poeta

ousa

(2012, p. 139).

 

O poema aproxima a figura do primeiro homem – Adão – à figura do poeta, ambos olhando o mundo pela primeira vez. Adão nomeia as coisas que vê no jardim do Éden; o poeta nomeia as coisas que vê no mundo. A atividade poética é entrevista, aqui, como meio pelo qual o mundo é evocado pela palavra, percepção imediata dos objetos e das sensações, deflagração das coisas enquanto acontecimento. Heidegger nos auxilia nessa compreensão ao afirmar que

Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz, faríamos bem em encontrar um dito que se diz genuinamente e não um dito qualquer, escolhido de qualquer modo. Dizer genuinamente é dizer de tal maneira que a plenitude do dizer, própria ao dito, é por sua vez inaugural. O que se diz genuinamente é o poema (2012, p. 12).

Associando a linguagem da poesia ao dizer original e, portanto, genuíno, o filósofo ale­mão entende que o poeta é aquele que dá nome às coisas, libertando a palavra do seu uso coti­diano histórico e desgastado, reconduzindo-a à sua condição primordial. O pensamento heideggeriano sobre linguagem poética, diz que “A poesia efetua esse retorno sempre renovado. E o poeta é aquele que perfura os mananciais, tomando os vocábu­los como palavras dizentes. Seu caminho não vai além das palavras; ele caminha entre elas, de uma a outra, escutando-as e fazendo-as falar.

O poema todo estabelece um paralelo entre Adão e o poeta, perceptível pelas repe­tições em clave comparativa do verso “Como um poeta”. Ao ver o mundo e passear no jardim, Adão se assemelha ao poeta na sua percepção imediata do que encontra. Importa-nos obser­var, também, que a figura do poeta aparece como antecessora do primeiro homem, o que sig­nifica dizer que a poesia já era atributo de Adão; a palavra dizente, nomeadora, era inerente à sua condição. A característica central do livro é a profunda ligação com a palavra e sua gênese. Poder-se-ia começar pelo título, Gabriel, origem hebraica, herói e homem, e passar pelo primeiro texto. A poesia de Eunice Arruda procura o núcleo das coisas, o fundo. Pois se constrói mais do que esconde. Lembra o poeta italiano Ungaretti pela síntese. O momento é preso e encantado. Com a captação da luz. O texto se entretece de tênues fios, sob o tear habilidoso e exato. E na lição de Ezra Pound que diz que a poesia é o máximo de sentido no mínimo de palavras, este livro de ful­gor e raízes explode.

O pecado cometido por Adão – ter comido o fruto proibido – também assola o poeta; ambos ousam dar um passo além do que podem. Pela gênese bíblica, sabemos que decorre daí a perda do paraíso, o sofrimento e a multiplicação dos homens. Adão e o poeta se correspon­dem na experiência dilacerada e incorporam o fragmentarismo da condição errante. A poesia de Eunice Arruda capta o erro e a dissonância, a agudeza da emoção e a chaga sempre aberta. Mas na exploração desses sentimentos profundos, encontra lugar, também, uma súbita alegria, manifesta em tom de resistência. O poema “Propósito” nos dá a dimensão desse aspecto:

 

Viver pouco mas

viver muito

Ser todo o pensamento

Toda a esperança

Toda a alegria

ou angústia – mas ser

Nunca morrer

enquanto viver

(2012, p. 9).

 


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O PAU

pau-brasil em foto de Felipe Coelho Minha gente, não é de hoje que o dinheiro chama-se Pau, no Brasil. Você pergunta um preço e logo dizem dez paus. Cento e vinte mil paus. Dois milhões de paus! Estaríamos assim, senhor ministro, facilitando a dificuldade de que a nova moeda vai trazer. Nosso dinheiro sempre se traduziu em paus e, então, não custa nada oficializar o Pau. Nos cheques também: cento e oitenta e cinco mil e duzentos paus. Evidente que as mulheres vão logo reclamar desta solução machista (na opinião delas). Calma, meninas, falta o centavo. Poderíamos chamar o centavo de Seio. Você poderia fazer uma compra e fazer o cheque: duzentos e quarenta paus e sessenta e nove seios. Esta imagem povoa a imaginação erótica-maliciosa, não acha? Sessenta e nove seios bem redondinhos, você, meu chapa, não vê a hora de encher a mão! Isto tudo facilitaria muito a vida dos futuros ministros da economia quando daqui a alguns anos, inevitavelmente, terão que cortar dois zeros (podemos d...

Trechos de Lavoura Arcaica

Raduan Nassar no relançamento do livro em 2005 Imagem: revista Usina             “Na modorra das tardes vadias da fazenda, era num sítio, lá no bosque, que eu escapava aos olhos apreensivos da família. Amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma, vergada ao peso de um botão vermelho. Não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor velando em silêncio e cheios de paciência o meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda?” (...)             “De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo...

O Visionário Murilo Mendes

Retrato de Murilo Mendes (1951) de Flávio de Carvalho Hoje completaram-se 38 anos de seu falecimento Murilo Mendes, uma das mais interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta difícil e, por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade desconcertante, sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Wolfgang Amadeus Mozart e ouvia suas músicas de joelhos, na mais completa ascese mística, não permitindo que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões. Certa vez, telegrafou para Adolph Hitler protestando em nome de Mozart contra o bombardeio em Salzburgo. Sua fixação contemplativa por janelas foi assunto do cronista Rubem Braga. Em 1910, presenciou a passagem do cometa Halley. Sete anos depois, fugiu do internato para assistir ao brilho de outro cometa: Nijinski, o bailarino. Em ambos os casos sentiu-se tocado pela poesia. “Na...