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Relações sólidas e líquidas

 

Escultura Melancholy (Melancolia) do artista romeno Albert György

Muito mais do que apenas um lugar de consumo, o bar mostra-se um lugar de encontros, trocas e disputas. Sua construção foi pensada apenas para o lazer, mas foi ganhando um novo significado através dos grupos que o frequenta. A cada geração, o bar ganha um novo sentido e pode ser visto de diversas maneiras pela sociedade civil, de um reduto de viciados até o início da revolução.

As formas de interação apresentadas no bar podem ser analisadas dentro e fora dele, porque não se pode ignorar as relações sociais que são feitas de expectativas, tanto da impressão que se dá quanto a impressão que se recebe, são apresentadas dentro desse estabelecimento que não é puramente comercial, mas sim social.

O bar não foi pensado apenas para se passar o tempo ou descansar, ele surge, em seu atual estilo, como uma forma de recuperar a sanidade do proletário nos grandes burgos da Inglaterra. Assim, os pubs se tornaram o reduto daqueles que construíram a Grã-Bretanha. O mesmo foi visto como um refúgio dos homens das famílias que seguiam a linha da burguesia, porém, a desigualdade de gênero já começava partindo daquela época, onde o homem poderia ir ao bar, entretanto, a mulher estaria sentenciada a prisão como sua forma única de lazer.

A desigualdade de gênero se reproduz em meio aos bares e demais locais ainda hoje, atitudes como a dos garçons de perguntarem ao homem qual o pedido, se quer a conta, ou até mesmos os péssimos olhares que são dados as mulheres que confraternizam no bar, pois são violências simbólicas contra a mulher. Mas isso não se deve apenas ao machismo estruturado, mas também aos comerciais de televisão das companhias que vendem cerveja e demais bebidas, porque a maioria das propagandas publicitárias destacam a mulher como apenas um objeto em seus comerciais. Porém, há uma grande mudança na estratégia de marketing das grandes corporações, pela tendência cada vez maior de desconstrução de que bar é coisa de homem, não de mulher. O público feminino vem cada vez mais resistindo não apenas no mercado e na esfera privada, mas também no bar.

Sua proibição gerou um caos social gigantesco nos Estados Unidos em 1920, a implementação da “Lei Seca” criou diversos grandes mafiosos e disputas entre eles, esse processo só teve seu fim em 1929 por conta da crise que abrangeu o país no mesmo ano, que fez com que o Estado abrisse novamente seus olhos para o comércio que o bar promovia na cidade, o mesmo fato aconteceu com a legalização da maconha em alguns Estados. O que se evidencia: a perca do mercado, mas o que não se diz foi a perca de um local que foge do senso comum, do monótono e do padrão.

O lazer torna-se essencial para uma sociedade saudável, claro que não há como negar que existem diversas formas ruins de utilizar um bar, para isso, o Estado deve amparar e estar de prontidão oferecendo não apenas um excelente hospital, mas programas educacionais que digam quais os efeitos não apenas do álcool, mas de todas as drogas em si, incluindo as que não são ditas como drogas: o remédio, café, açúcar, etc.

Em meio ao moralismo, o bar sempre surgiu como um ponto de resistência, seja da pura boêmia, seja da pura utopia. Não podemos perder o sentimento de conciliação e reconhecimento mútuo, além do encontro de um comum que só o bar e seus momentos atemporais são capazes de promover, tudo isso em meio ao caos urbano. O bar como local de experiências, onde há um anseio pela mudança, pelo novo, pelo diferente.

Os redutos da boêmia carioca foram lugares de resistência antes e durante a ditadura militar. Não podemos esquecer que após a abolição da escravatura, e com a chegada de diversos estrangeiros para assumir o trabalho assalariado no Brasil, muitos negros foram sujeitos ao desemprego, mesmo assim, as mulheres ainda conseguiam emprego mais fácil que os homens, logo, o próprio bar era um local de encontros, reconhecimento e da reafirmação da sua cultura afro-brasileira, que foi severamente proibida pela polícia da época.

Na ditadura, diversos revolucionários fizeram reuniões que não poderiam ter sido explanadas em diversos bares da Zona Norte e Oeste do Rio de Janeiro, sendo esses lugares pontos de traçamento de estratégias, reconhecimento e companheirismo entre cada militante que resistia em meio daqueles tenebrosos tempos. Não apenas no lado combativo, mas no lado cultural também havia resistência em meio aos bares ao redor do Brasil, principalmente com os membros da Tropicália e Tim Maia, grandes referências da música contracultural brasileira surgiram em meio a esses lugares solidários com qualquer um que entre.

O bar por si só não torna-se apenas um lugar de reconhecimento e solidariedade, também um dos retratos mais comuns da solidão, onde há não apenas o conforto por estar num local onde há diversas interações, mas também pelo reconhecimento de si só feito através do companheirismo que se tem através da interação com o garçom, até das novas ligações que se pode experimentar.

Ainda há em ascensão a tendência da gourmetização do bar, ferindo uma das suas principais características: os encontros dos mais diferentes nichos. Esses novos locais presam não pela dádiva das trocas, mas sim pela reprodução de uma exclusão social pertinente na sociedade. Não há mais uma solidariedade criada ali por diferentes segmentos da sociedade, mas cada vez mais a potencialização do sectarismo.

Vivemos em tempos líquidos. Nada foi feito para durar”. Esta frase do sociólogo polonês Zigmunt Bauman refere-se ao amor e a modernidade líquida por diluirem as relações sociais, tornando-as frágeis, superficiais e efêmeras, com pouca ou nenhuma durabilidade e estabilidade de outrora. Como fenômeno da sociedade atual, onde as relações humanas, incluindo as amorosas, se tornam mais fluidas, efêmeras e descartáveis, semelhantes a líquidos que não possuem forma fixa. Essa fluidez reflete a sociedade moderna, caracterizada pela busca por satisfação imediata, individualismo e medo do compromisso. Em termos mais detalhados, a teoria do “amor líquido” aponta um olhar sociológico, comportamental e etnográfico para o público frequentador de bares.

Deve-se ressaltar que, a teoria do “amor líquido” não é uma crítica simplista ao amor, mas sim uma análise sociológica sobre as mudanças nas relações humanas nos dias de hoje e seus impactos na vida humana. Ela caracteriza-se pela perda do sentido de comunidade que leva também a falta de compromisso com o outro. Tem como consequência a cegueira moral e a perda de sensibilidade. Possibilita a ênfase no individualismo excessivo levando ao isolamento, à falta de empatia e à dificuldade em construir laços significativos com os outros.

Devido a sobrecarga de informações pelos meios de comunicação e de estímulos na sociedade contemporânea leva à dificuldade de concentração e ao desenvolvimento de uma cultura da superficialidade. Pela compulsão consumista tem a ilusão de felicidade através da posse de bens materiais, mas essa busca constante pelo “ter” não traz satisfação duradoura. As pessoas são vistas como mercadorias, tendo um ciclo de uso e substituição, onde a busca por novas experiências e satisfações pessoais imediatas prevalecem sobre a construção de vínculos duradouros. Demonstram o medo de se apegar e a dificuldade em lidar com as vulnerabilidades intrínsecas ao amor são aspectos importantes desse cenário. Ocorre ainda um impacto na saúde mental decorrente da instabilidade e da falta de vínculos significativos favorecendo a ansiedade, a depressão e a solidão. O mesmo pode-se afirmar do uso excessivo das redes sociais, com suas interações superficiais e comparações constantes, que podem intensificar a sensação de superficialidade nas relações pelas faltas de contato humano e presencial.

Os alertas lançados pelas análises críticas convidam a uma reflexão sobre a necessidade de reconstruir laços sociais, cultivar relações mais profundas e buscar um sentido para a vida que vá além do consumo e da busca individual por sucesso.


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