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Experiências e ecos órficos

 

Sou poeta isto é deixo que a beleza venha e a acolho em minha alma seu ninho natural

para que subitamente levante voo.

Dora Ferreira da Silva, escritora paulista de Conchas, expoente da voz feminina, reconhecida por diversos críticos e poetas em virtude de escrever poesia brasileira contemporânea, abordando uma multiplicidade de temas que expressam a transcendência visceral extraída do cósmico. Tem mais peso reportar à poeta como autêntica e grandiosa principalmente por captar em seu labor “o poder encantatório [...] sua magia verbal, na sua retórica de efeito reversível e projetivo ao mesmo tempo” (CANNABRAVA, 1999, p.429). Convém proferir que a escritora também foi tradutora de poetas alemães como Rilke, Holderlin, do sacerdote San Juan de la Cruz e outros renomados. Angariou prêmios em sua trajetória como escritora destacando que “recebeu o Prêmio Jabuti por duas vezes atribuído a Andanças (1970) e Poemas da estrangeira (1996); e a menção honrosa do Pen Center a Talhamar, em 1982” (Cesar, 1999, p.475). Com êxito, recebeu o prêmio Machado de Assis pela Academia Brasileira de Letras por ter publicado a brilhante obra, Poesia Reunida, em 1999, que engloba oito livros, contendo obras como Uma via de ver as coisas, na qual o sujeito lírico é visto pelas próprias coisas que ele conhece.

O poema “Mulher e pássaro”, da obra Poemas da Estrangeira, contida na publicação Poesia Reunida (1999), torna-se significativo por mostrar a questão da voz lírica e como o eu lírico faz-se evocado.

MULHER E PÁSSARO

Linha invisível

liga-me àquela andorinha:

tato percorrendo um trajeto

de comunhão.

O pássaro debate-se em meu peito.

Ou coração? A andorinha

se esvai na tarde. Leva consigo o que não sei de mim.

SILVA, 1999, p.282

Diante da leitura feita a respeito do poema Mulher e pássaro, há uma proximidade entre a mulher que estabelece uma conexão com o pássaro, o eu lírico cede lugar ao inconsciente, seu pensamento e matéria são consumados pela presença simbólica da andorinha, ela representa o íntimo, a profundidade que o sujeito lírico, “mulher”, carrega em si. Conforme a postura teórica da Crítica do Imaginário mostra-se por meio do ser uma “tendência para a animalização o do seu pensamento e uma troca constante faz-se por essa assimilação entre os sentimentos humanos e a animação do animal” (2002, p. 71).

Nesta esfera, por mais que trate da animalidade, o poema é sublime e espiritual à medida que simboliza na imagem do pássaro o fazer poético, uma vez que o eu lírico se comunga no voo da andorinha. Vislumbra-se nos dois versos “debate-se em meu peito/ Ou coração?” o próprio fazer poético, visto que representa a unidade entre Eu e poesia. A professora Karyne Costa, mestra em estudos literários, considera que (2015, p. 2-3):

Eu e poesia, simbolizados pela ‘Mulher’ e pelo ‘pássaro’ se fundem em um organismo vivo e acomodam uma totalidade, simbolizados pela imagem coração. Poesia e vida são, nesse sentido, um exercício de comunhão, totalidade e devotamento.

O fortalecimento da presença poética é inaugurado também nos seguintes versos “se esvai na tarde. Leva consigo/ o que não sei de mim”. Por este parâmetro o sujeito lírico atinge o desdobramento profundo da solidão, pois o sujeito se encontra somente no estado pleno devido à presença do pássaro, que configura no “eu” a inspiração poética. Também se verifica que o pássaro representa a “sacralidade ancestral” (COSTA, 2015, p.3), pois ele patenteia e proporciona uma fonte de mistério e experiência para o eu lírico, lograda e assimilada no plano subjetivo, desconhecido, no mundo concreto. Também é necessário ponderar que o ato de imiscuir entre pássaro e eu lírico é um estágio intangível, uma vez que há sinal da transcendência quando o sujeito lírico faz um “trajeto”, esta viagem, é uma das nuances que suscita todas as aspirações possíveis não reveladas, seja a dor, solidão, medo, dentre outras sensibilidades.


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