(Quarta parte)
Há um tom oracular que passa por vários poemas,
como o que acabamos de citar no décimo segundo parágrafo do ensaio anterior,
marcado pelo afastamento da primeira pessoa, sobreposição do verbo no
infinitivo, pelo jogo de oposições e pela linguagem condensada. O próprio
exercício poético surge, em Eunice Arruda, como chamado, como modo de ser e de
viver, a exemplo de um Sísifo a perscrutar a palavra, sem uma finalidade
previamente concebida, mas iluminando-se na própria jornada, num movimento de
morte e renascimento. O poema “Mensagem”,
do livro Risco (1998), melhor nos diz
sobre esse aspecto de sua poesia:
É
Natal
novamente
onde estamos
e onde não estamos
Nas ruas
nas noites
enfeitadas
o Natal chega
passo a passo
em cada dia de dezembro
E não há como fugir
já não há onde esconder
o encontro é inevitável
Há que se aproximar então
o coração aberto
o afeto dilatado
Deixar
se desprender de nós
fardos desnecessários
forjados impedimentos
e aceitar
Aceitar esta carga – condição
de ser humano
É Natal
Há que se respirar
com novo fôlego
um outro ar
aqui
onde estamos
e onde jamais estaremos
o Natal nos transporta
como um barco incansável
esta água fluir é preciso
aceitar
o mistério das fontes
Não podemos deixar morrer
nenhum nascimento
(2012, p. 163-164).
Elementos da mitologia cristã e do misticismo
avultam vez por outra em poemas de Eunice Arruda, como é o caso dos poemas que
compõem o livro Gabriel, já citado. A
poeta se apropria de tais elementos não como adesão e entrega, mas como forma
de compreender e conduzir a vida e o tempo presente. O Natal, no poema “Mensagem”, é visto como momento de se
“desprender de nós”; levando em conta a leitura dual do verso, o período
natalino propicia desfazimento dos nós (substantivo) impostos pela realidade, e
também afastamento de nós (pronome), de nossas questões irresolutas. Os dias de
dezembro são como um “barco incansável”. Em oposição ao muro, ao cimento, à
parede dura do cotidiano, o Natal oferece a fluidez e possibilita que o coração
esteja aberto; sendo assim, “É preciso
deixar / esta água / fluir” e “[...] não deixar morrer nenhum nascimento”.
A poesia de Arruda concentra, ainda, temas caros à
lírica, como o amor, a transitoriedade da vida, a ausência do outro e a
solidão. Há recorrência de encontros e despedidas, ratificando o caráter
cíclico e dinâmico das relações; há o sentimento de desamparo divino, expresso
pelas grandes questões existenciais, mas também pelos objetos próximos, pela
casa vazia, pela noite fria. Se a arte lhe surge como necessidade de expressão
da dor e da angústia, por outro lado é alento que suaviza o cotidiano, é
consciência da solidão humana, é gesto que agrega a experiência sem poupar-se
das feridas, expondo a ossatura do que se vive, e também do que não se vive.
Referências:
ANDRADE, Alexandre de Melo. Crise do historicismo e eterno retorno na poesia brasileira contemporânea. 2014. 81 p. (Relatório de Estágio pós-doutoral) – Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2014, São Paulo.
ARRUDA. Eunice. Poesia Reunida. São Paulo: Pantemporâneo, 2012. BOSI, Alfredo. Tendências Contemporâneas. In:
BOSI, Alfredo.História Concisa da Literatura Brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2012. (Coleção Pensamento Humano).
NUNES, Benedito. Passagem para o poético: Filosofia e Poesia em Heidegger. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
PROENÇA FILHO, Domício (Org.). Concerto a quatro vozes. Rio de Janeiro, São Paulo: Ed. Record, 2006. Estação Literária, Londrina, v. 24, p. 192-203, jul./dez. 2019203
STAIGER, Émil. Conceitos fundamentais da poética. Trad. Celeste Aída Galeão. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
Comentários
Postar um comentário