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Experiências e ecos órficos (3)

 

(Parte 3)

A proposta da autora parece ser “evocar certa melodia das origens ou uma imagem do originário” (SILVA, 1999, p.478), evocando figuras mitológicas femininas. Conforme o que o crítico Euryalo Cannabrava (1999) tece sobre a obra poética de Dora, nota-se que se concretiza a ideia de que a poeta tenta reativar o mito pela celebração das deusas, pois para a poeta, a mitologia é uma forma de retomar a essência do ser humano, entendido como animal místico.

Nos tempos atuais abordar o sagrado é uma forma de negar a descrença que marca a nossa civilização. Quer dizer, integra ao mito uma forma conservadora ideológica, pois a memória, como forma de pensamento concreto e unitivo, é o impulso primeiro e recorrente da atividade poética. Nesse âmbito, falo da capacidade da memória como fator indispensável para a formação histórica, seja a linguagem, seja reviver o passado pela memória. Isso é um exercício do espírito poético.

Evidencia-se no texto que a resistência de recordar a poesia mítica ocorre pelo receio de desnudar a própria natureza humana. Acredito que, a poesia que busca dizer a idade de ouro e o paraíso perdido acaba exercendo um papel humanizador das carências primárias do corpo: a comida, o calor, o sono, o amor. Nesta perspectiva, a poesia desempenha a função de buscar através do mundo (estado consciente) retomar o inconsciente (poético) para viver o inefável, o devaneio que fora submergido da realidade.

Reinventar imagens da unidade perdida, eis o modo que a poesia do mito e do sonho encontrou para resistir à dor das contradições que a consciência vigilante não pode deixar de ver. Neste sentido, há uma valorização da arte que consegue suprir os sentimentos humanos. Na discussão do ensaio, torna-se preponderante frisar que a mitologia é vista como parte integrante no desenvolvimento da sociedade, visto que as relações sociais e o modo de ver a natureza são inspirações da mitologia grega que estão contidas na imaginação. Sendo assim, a inspiração mitológica mostra-se luz para a imaginação, é a arte que sobrepõe qualquer valor atual.

Dentre as deusas citadas na poesia de Dora Ferreira da Silva, será enfatizada a deusa Afrodite.

A poeta configura na deusa “a embriaguez do desejo, mas com a atração amorosa, a doçura e o fascínio, graça, magia do amor. Vejamos o poema Afrodite, do livro “Talhamar” (Silva, 1982, p.244).

AFRODITE

Disse a deusa a sorrir:

esta manhã o mar deu-me adereços e vestida de pérolas

fui a um reino distante. Cânticos despertaram vides e frutos nasceram, que o sol cultiva nos pomares.

Coros adolescentes perseguiam Eros

---- o coroado de pâmpanos ----

pois de meus lábios haviam provado o vinho farto e suave

Liames atando e desatando,

ele a beleza ocultava nas angras mais profundas, pois quando emergia ---- flâmeo ! ----

o murmúrio do mar as praias inundava e a embriaguez vizinha da morte

ameaçava os amantes...

Afrodite apresenta aspectos elementares que correspondem à representação de deusa da beleza, do amor e do casamento. Muito próprio da deusa o ideário de sensualidade e beleza extraordinária porquanto cada povo atribuía a ela concepções variadas como em Corinto incentivava-se a prostituição sagrada no templo da deusa; em Atenas, ela era uma divindade séria e respeitável, protetora do matrimônio e amor conjugal. Como se observa sobre a deusa, Afrodite exala salvação ou perdição, prazer, sedução, amor e comoção pela beleza radiante.

Ao olhar para o poema Afrodite, vê-se que representa a hereditariedade e complemento entre a luz e as trevas pelos fragmentos “(...) dos lábios da deusa (...) o vinho farto e suave” versus “O murmúrio do mar as praias inundava e a embriaguez vizinha da morte ameaça os amantes”.


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