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Vida breve e amplas invenções líricas

 

(Quarta Parte)

A “presença excessiva de Cabral” que a escritora Nélida Piñon vê nos poemas de “Inventos”, aliada a “soluções rigorosamente originais”, é também um modo de ver este invento de dois que representa para Lupe o amor como uma forma de arte. Considerado pela autora seu livro predileto, essas longas séries de poemas sobre o mar e o amor têm como invento fazer que se encontrem, numa experiência inédita, a essência lírica da poeta com um rigor fenomenológico. Esse “invento” irá se renovar mais tarde no livro “Poemas ao outro”, sendo emblemáticas as epígrafes dos livros desta última fase de Lupe, intensamente envolvida com a universidade: Heidegger, Merleau-Ponty e Lévi-Strauss.

Ainda em 1967, Lupe inicia seu doutorado, colabora como articulista em jornais e revistas acadêmicas e passa a ministrar o curso de Estética na USP ao lado de Sábato Magaldi, Paulo Emilio Salles Gomes e Jean-Claude Bernardet. Escreve também nessa época sua única peça de teatro, de cunho político e social, “Amanhã seria diferente”. Em ritmo de insaciável criação, na qual se inclui sua atividade como docente, o que mais interessa é o convívio com o outro, o exercício da crítica inteligente e, par a par com um aprimoramento, uma libertação, na poesia, de todo “ranço filosófico”. São nesses poemas finais, escritos em plena ditadura militar, que Lupe se mostra mais engajada. Suas experiências de viagem a Valparaíso, Brasília e Salvador querem tocar a realidade sensível da miséria sem prejuízo da beleza; diálogos poéticos com Pablo Neruda, Federico Garcia Lorca e Rainer Maria Rilke refletem sobre o poder de criação para além do verso, como um poder da vida (“O vivo é antes do verso”). Mas importa lembrar, como observa Leila V. B. Gouvêa, que, apesar da busca de Lupe por uma objetividade poética, e das ressonâncias de João Cabral que muitos veem em seus versos, “as coisas concretas” estão praticamente ausentes de sua poesia.

Poemas ao Outro”, que receberia em 1971 o prêmio Jabuti, é um livro carregado do sentimento do mundo, com forte apelo humanista. Esse outro a quem a autora dá o nome de João, que percorre todo o livro, encarna tanto o homem do povo – “Não sei, João / se és ou serias / meu irmão. / (…) / Não tens essência / ou natureza humana / que te designe / a permanência / mas neste tempo / teu rosto é comum / e familiar: / por muitos homens / vejo-te passar” – como também uma sutil interlocução com o poeta de “Morte e vida severina”. Lupe, que se diz “pós-drummondiana”, acredita ter finalmente alcançado maior concisão e simplicidade. Quando recebe a notícia de que é a vencedora do Prêmio Governador do Estado, ao qual concorriam, entre outros, Hilda Hilst, Neide Archanjo e Modesto Carone, a poeta, mal se recuperando de uma cirurgia, está lidando com outra recente notícia: a descoberta de um câncer já transformado em metástase.

Entre o final do ano de 1969 e o começo de 1970, sem interromper seus projetos, Lupe Cotrim Garaude enfrenta meses dificílimos de tratamento contra a doença, e, paralelamente às atividades universitárias, organiza, graças ao estímulo de Gianotti, a seleção de seus poemas para uma futura antologia. A mesma sede de vida a mantém atuante e criativa até poucos dias antes de sua morte, quando, no sítio de um amigo, na Serra da Mantiqueira, escreve seu derradeiro poema, “Diante do vale, atrás do mar”:

De repente

um vento mais forte:

o verde se eriça

e gera seu próprio mar

em ondas que se identificam

pela cor – no musgo

de memórias azuis, no

verde desenho

dos pinheiros que têm

seu tom nos relevos,

no teto das montanhas

a ser sua própria noite.

(…)

Nesta paisagem

é o músculo do olhar

que conta, é o saber

enrolar-se de nervuras

e contemplar, é nascer a mais

neste silêncio.

Atrás do mar criador

outro horizonte

se prepara:

dentro do vale

curvas estáveis reclamam permanências

- não ir – fundir, semear

a vida reclamando um sentido

explícito, a nitidez de um perfil.

E o ver desses verdes

é armadilha

- do lado da fonte e da paz.

Numa comovente e tácita despedida (“a morte é o que não falo”), predomina aquele verdor do qual toda a obra de Lupe Cotrim Garaude está impregnada, signo da vida em sua potência criadora. Mais do que uma despedida, na realidade, a poeta prepara o seu renascimento, a sua permanência para além do verso, “fazendo parte / da paisagem”. Não se trata mais de uma busca consciente senão da realização final de uma “poesia fenomenológica” cujo alcance lhe é dado pela própria vida. Belos e emocionantes esses últimos versos porque, de uma verdade que ultrapassa o programático, o teórico, o metodicamente construído, vêm de uma antiga fonte de lirismo, o que bem se percebe no encarte de “Inéditos” que integra a antologia “Obra consentida”, de 1973.

Lupe Cotrim Garaude tem 36 anos, dois filhos, seis livros publicados, sendo professora de Estética na Universidade de São Paulo e acaba de vencer o prêmio Governador do Estado em poesia, pelo livro ainda inédito “Poemas ao Outro”, quando morre em Campos de Jordão, em fevereiro de 1970, depois de uma rápida, mas sofrida luta contra o câncer. Os escritores seus amigos e correspondentes, como Hilda Hilst, Lygia Fagundes Telles, Renata Pallottini, Carlos Drummond de Andrade e Caio Fernando Abreu, prestam-lhe homenagens. Seus colegas, tanto de graduação como de docência, sentem a perda de uma figura intelectual importante dentro da universidade.

Um jovem poeta a caminho da cela da fome, em Auschwitz, fala o seu poema enquanto é levado por um SS: “Curvo-me sobre o que foi rosto. Oval em branco. / Pálpebra remota. / Boca disciplinada para o canto. O braço longo. / Asa de ombro. / (…) Teve mãos desmedidas e o grito exacerbado foi o verso. Amou. Amou”. O poema desse personagem criado por Hilda Hilst em sua peça “As aves da noite”, de 1968, reaparece discretamente modificado, em 1970, na homenagem que Hilda faz à sua companheira de geração Lupe Cotrim Garaude.

A partida de Lupe durante os anos sombrios de repressão, censura, prisão e violência contra estudantes e artistas no Brasil não por acaso leva Hilda Hilst a extrair da fala do seu personagem condenado, “cúmplice de aflitos”, da peça “Aves da noite”, o poema com que homenageia Lupe. Em 1980, Hilda volta a homenagear a amiga, citando-a em uma das epígrafes de seu livro de ficção “Tu não te moves de ti”. Desta vez, são versos extraídos de um dos inéditos da antologia “Obra consentida”: “Paixão. Só dela cresce / o fôlego de um rumo”. Nenhuma síntese melhor para a poesia de Lupe e sua vida.

Referências:

GARAUDE, Lupe Cotrim. “Obra Consentida”, Brasiliense, São Paulo, 1973.

_______________.  “Raiz comum”, Civilização Brasileira, São Paulo, 1959.

______________. “Entre a flor e o tempo”, José Olympio, Rio de Janeiro, 1961.

_______________. “Poemas ao Outro”, Conselho Estadual de Cultura, São Paulo 1970.

____________________. “Encontro”, Brasiliense, São Paulo, 1984.

GOUVÊA, Leila V. B. “Estrela Breve”, Imprensa Oficial, São Paulo, 2011.

HILST, Hilda. “Teatro Completo”, Globo, São Paulo, 2011.

Bibliografia de Lupe Cotrim Garaude: Raiz Comum (1955); Monólogos do Afeto (1956); Entre a Flor e o Tempo (1961); Cântico da terra (1963); O poeta e o Mundo (1964); Inventos (1968); Poemas ao outro (1970); Encontro (1984), antologia pela Ed. Braziliense.


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