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Experiências e ecos órficos (2)

 

                Parte 2

Dora Ferreira da Silva constrói sua poesia mediante uma inquietude da realidade que é ancorada através de valores patriarcais e da visão etnocêntrica masculina. A poetisa retoma este contexto para mostrar o vigor do universo feminino ao conduzir para um ‘espaço imaginário’ no qual o eu lírico tem a liberdade em experimentar todas as sensibilidades e vicissitudes desconhecidas, dando vazão ao sublime ao “tornar conhecida a voz da alma” (Guimarães, 2006, p.1). Parte do pressuposto para entender que o mito funde-se nesse estado de alma, por apresentar uma visão aprofundada de mundo, que implica e/ou acarreta dizer que o ser humano tenta a descoberta da própria existência por meio do fluxo de consciência.

Subjaz no poema de Dora Ferreira da Silva (1999) uma preocupação com a dimensão semântica da palavra, pois há uma intencionalidade por parte da autora em transformar o que é concreto em simbólico (imagem), isto decorre através da disposição e organização dos vocábulos escolhidos. Portanto, nota-se a tentativa da poeta em reativar o mítico no poema. Para isso, ela sucede através das escolhas vocabulares e assim instaura o fazer poético para projetar o mundo simbólico ao ouvinte, despertando nele a curiosidade para instigá-lo a fragmentar cada unidade estrutural, condicionando o leitor para se arrebatar para o devaneio, o inefável e assim permear ao novo, à origem. Incumbe dizer que para chegar ao alcance da origem, o leitor teve que esmiuçar e debruçar sobre o poema para atingir a sensibilidade da essência. O poema “Boneca” permite que o leitor perfaça este debruçar.

BONECA

A boneca de feltro

parece assustada com o próximo milênio.

Quem a aninhará nos braços

com seus olhos de medo e retrós?

O signo da boneca é frágil mais frágil que o de pássaro. Confia. Assim passiva

o vento brincará contigo franzirá teu avental

dirá coisas que entendes desde a aurora das coisas:

foste um caroço de manga uma forma de nuvem

ou galho com braços

de ameixeira no quintal.

Não temas. Solta o corpo de feltro. Assim.

ara ser embalada nos braços da menina que houver.

A linguagem envolvente e o mistério que causam os poemas de Dora são singularidades que percorrem toda palavra poética. Afinal, o poeta para criar o poema, não se limita, mas usa temas universais, atemporais e explora o estranho e o infinito do cosmo, sendo assim, traz à tona a representação simbólica, o mito. É magnífica a sagacidade de Dora em aproximar o mundo imaginário dentro do próprio eu, é uma sintonia ímpar, sensação nova e valiosa, que permite o ser humano captar as emoções que não estão impressas no mundo concreto, palpável, à medida que o novo dialoga e provém da tradição. Pois a realidade, por si, é supérflua e não dispõe a experiência das entrelinhas.

Parte-se da noção e importância da poesia para dar mérito a ela, ao reconhecer que é por meio da leitura da poesia que o indivíduo poderá experimentar o ‘olhar profundo’. O sujeito e mundo se entrecruzam para que o ser penetre no próprio “eu” da alma, assim, desejos, possibilidades e outras identidades sejam criadas, reinventadas, numa intimidade que o mundo simbólico oferece para o leitor sentir-se pleno, feliz e autônomo. Porquanto ele desprende de todas as coisas do mundo real, ‘a mediocridade’, para enobrecer no universo imaginário. Logo, nota-se que é um desafio da poesia “(...) acender no ser humano o desejo de outra forma de existência” (Guimarães, 2006, p.10). Isto torna possível à medida que o próprio indivíduo tenha consciência em perceber e sentir a plenitude espiritual e corporal.

Dora evoca em sua poesia os anseios da mulher, que foram silenciados diante da imposição e austeridade masculina. Na poesia, a poeta expressa a imaginação poética advinda dos segredos da dimensão interna da mulher. O que é mais valioso ressaltar com a intencionalidade de Dora ao envolver o mito e a presença feminina no poema, é condicionar a própria figura feminina a outro mundo que oferece outra possibilidade que não seja tão limitada, mas que promova no imaginário o reencontro da genealogia de criação pelo infinito.

Maria Severina (2006) discute em seu artigo “A reconstrução do universo feminino na poesia de Dora Ferreira da Silva” que o símbolo é configurado no poema de Dora funcionando como um elo entre coisas do mundo e do sujeito. Também é considerável acrescentar que Maria Severina (2006) parafraseia o pensamento do crítico Vilém Flusser para dizer sobre a presença do símbolo na obra de Dora, pondera que:

O símbolo torna-se além de mediador entre o sujeito e a coisa, também a ponte entre o sujeito e a transcendência. Dora considera o símbolo uma revelação que salva o ser humano de seu alheamento, de sua cegueira. Em sua poesia, o símbolo é um meio de dar significado ao mundo, em especial ao universo feminino, tão carregado de menosprezo, de valores impostos, de dores caladas, de desejos reprimidos, de máscaras. (GUIMARÃES, 2006 p.13)

Conforme foi patenteado, o símbolo é de extrema importância para a epifania mítica dentro do cosmo feminino, pois é através dos símbolos que as imagens são projetadas, e pelas imagens criadas estão intrínsecas todas as lembranças que residem no universo feminino, seja a solidão, a fragilidade ou a submissão. E que a partir desses símbolos haja uma possibilidade-expectativa de que o “eu” olhe para seu íntimo (profundo) com mais amor, coragem e brilho ao presenciar a si e ao mundo com um novo olhar. Faz-se oportuno concluir que a poesia mítica traz o caráter sagrado e humano para a sociedade. Como assevera Guimarães (2006), Dora busca resgatar por meio da mitologia a mulher ancestral para revitalizar a mulher hodierna, transformando-a em mulher selvagem com traços de mulher sonhadora, sábia, humana, fraterna e que resgata a origem e/ou essência desvanecida.


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