Pular para o conteúdo principal

Mal-estar da civilização


Foto de Augusto César Cunha Pessoa, de João Pessoa, Paraíba






 “Quem é que está botando dinamite na cabeça do século?”
(Defeito 2, “Curiosidade”, Tom Zé, 1994)





A competição econômica, caso continue no mesmo ritmo, na opinião dos maiores ecologistas, sociólogos e economistas do mundo, levará a Terra a esgotar seus recursos em menos de 20 anos. Este século, ao invés de ser a idade de ouro da civilização do lazer, venha ser a época em que a humanidade estará submergindo, melancolicamente, sob o peso do seu luxo e da sua loucura. Por isso, o instinto de vida que responde a essa carga predatória universal brota suas sementes. Os seres humanos no mundo vêm questionando o antigo sistema falido junto à queda de todas as instituições. A luta que se travará neste terceiro milênio oporá a cultura dominante e a cultura alternativa que quer renascer. Do resultado dessa luta depende a sobrevivência ou não da espécie. Pela primeira vez, a tecnologia deu ao Homem o poder de destruição ou de libertação global, e até de limpeza do lixo cultural que teima em obstruir o caminho para um estado de consciência mais natural.
Existem dezenas de razões que justificam os estudos das utopias (e ideologias) neste século, um tanto quanto mirrado e vazio no que diz respeito à cultura e ao comportamento. A falta de cultura gerou o medo, ao mesmo tempo, a insegurança, intensificada pela mediocridade - produzindo milhares de seres frustrados, controlados pelas forças corporativas. Geração sem perspectiva, além de dissimulada, são os termos para definir os que não se encaixam em ideologias e movimentos, pelo fato de ultrapassar o segundo milênio, que mostrou, na falta de imaginação, sem iniciativa, o âmago dos anos 90. Trata-se de uma década muito delicada, com vários espíritos ainda indefinidos. Mas, como toda situação difícil ou mal-estar passa, é importante reavaliarmos nossos conceitos e valores, com uma olhada de frente ao espelho.
Um dos equívocos mais frequentes no julgamento que se faz ao pensamento de Ricardo Semler, que se espalhou pelo Brasil, é o de cingi-lo à acusação clássica de “futurista”,“subjetivo”e“utópico” ou “solução puramente pessoal”. Estes argumentos reacionários e dogmáticos identificam de maneira totalitária, e subestimam a capacidade do “ócio criativo” transformar-se ao sabor da história. Isso não acontece de estalo, de uma hora para outra. É verdade que o ponto de partida desta alternativa é utópico.
Hoje, a maioria das pessoas recusa-se a participar de qualquer associação, movimento político ou ideológico, e essa postura corresponde ao conformismo e à passividade característica dos anos 90. Isso corresponde às posições teóricas da globalização, uma nova expressão para um fenômeno antigo, a organização de empresas e economias em escalas planetárias. Esta adaptação da ideia de Marshall McLuhan é, sobretudo, financeira, animada por uma disponibilidade sem precedentes de dinheiro ocioso num mundo que cresce pouco, desemprega muito e convive, ainda, com formas cada vez mais sofisticadas de exclusão social e desigualdade tecnológica.
Para julgar politicamente o “ócio criativo” de Semler é preciso julgar o seu verdadeiro espírito. Vale lembrar a ideia dos orfistas de que as religiões e políticas oficiais reprimiam o apelo dos estímulos sensoriais, impondo uma cultura opaca, cinzenta e ilógica. É chegada a hora de reacordar os sentidos desprendidos das disciplinas do Estado, do mercado, consumo e da padronização das modas, vale também para o conceito imposto e repressor do “politicamente correto.” A história mais recente revela um afastamento crescente das satisfações existenciais restritas ao âmbito privado do indivíduo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O PAU

pau-brasil em foto de Felipe Coelho Minha gente, não é de hoje que o dinheiro chama-se Pau, no Brasil. Você pergunta um preço e logo dizem dez paus. Cento e vinte mil paus. Dois milhões de paus! Estaríamos assim, senhor ministro, facilitando a dificuldade de que a nova moeda vai trazer. Nosso dinheiro sempre se traduziu em paus e, então, não custa nada oficializar o Pau. Nos cheques também: cento e oitenta e cinco mil e duzentos paus. Evidente que as mulheres vão logo reclamar desta solução machista (na opinião delas). Calma, meninas, falta o centavo. Poderíamos chamar o centavo de Seio. Você poderia fazer uma compra e fazer o cheque: duzentos e quarenta paus e sessenta e nove seios. Esta imagem povoa a imaginação erótica-maliciosa, não acha? Sessenta e nove seios bem redondinhos, você, meu chapa, não vê a hora de encher a mão! Isto tudo facilitaria muito a vida dos futuros ministros da economia quando daqui a alguns anos, inevitavelmente, terão que cortar dois zeros (podemos d

Trechos de Lavoura Arcaica

Raduan Nassar no relançamento do livro em 2005 Imagem: revista Usina             “Na modorra das tardes vadias da fazenda, era num sítio, lá no bosque, que eu escapava aos olhos apreensivos da família. Amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma, vergada ao peso de um botão vermelho. Não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor velando em silêncio e cheios de paciência o meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda?” (...)             “De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo. E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo. E, se eles er

O Visionário Murilo Mendes

Retrato de Murilo Mendes (1951) de Flávio de Carvalho Hoje completaram-se 38 anos de seu falecimento Murilo Mendes, uma das mais interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta difícil e, por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade desconcertante, sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Wolfgang Amadeus Mozart e ouvia suas músicas de joelhos, na mais completa ascese mística, não permitindo que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões. Certa vez, telegrafou para Adolph Hitler protestando em nome de Mozart contra o bombardeio em Salzburgo. Sua fixação contemplativa por janelas foi assunto do cronista Rubem Braga. Em 1910, presenciou a passagem do cometa Halley. Sete anos depois, fugiu do internato para assistir ao brilho de outro cometa: Nijinski, o bailarino. Em ambos os casos sentiu-se tocado pela poesia. “Na