Escritor produziu uma literatura com a essência
da alma
do povo
Como caracterizar de
modo coerente um escritor cujos críticos até os anos 80 teimavam em ignorar,
ou, quando não ignoravam, em considerar “desmazelado”, mártir ou alcoólatra? Em
Lima Barreto, de fato, fica difícil simbolizar os limites entre o intelectual
profundamente consciente das questões políticas e sociais de seu tempo e o
estilista que insistia em não ter estilo algum; entre o repórter extremamente
impiedoso e mordaz, que atacava de frente o lado grotesco dos homens, e o
mulato oprimido que chorava às escondidas na solidão de seu quarto, enchendo as
páginas do diário de angústia, vergonha e ressentimentos.
Exagero, coisas de escritor
provinciano, disseram alguns, enquanto outros preferiram não arriscar, levando
em conta apenas a hipótese pretensamente plausível de um justificado complexo
de inferioridade. A verdade, porém, é que Lima Barreto confundia literatura e
coerência intelectual. Mais do que tudo, o que importava, para ele, era a
sinceridade do escritor e a necessidade de transmiti-la diretamente, sem
rodeios ou artificialismos. Pagou, por isso, com a fama de desleixado e passou
muito tempo sem que alguém se lembrasse de seus escritos ou sequer de sua
presença nas letras nacionais.
Injustiça ou não, o
fato é que a situação perdurou e durante uns bons anos o leitor brasileiro não
pode vê-lo em sua luta quase solitária para que, neste país, a literatura de
algum modo levasse ao homem comum a mensagem de sua própria libertação e o
estímulo para que não deixasse de lutar enquanto todos os seus direitos
fundamentais não fossem reconhecidos. Eram esses, conforme acreditava, os
objetivos do escritor e, nessa missão de libertar os homens e lhes melhorar a
condição de vida, convinha não perder de vista que todo o vigor da experiência
pessoal era indispensável para sustentar a consciência artística. Ser militante,
na opinião dele, implicava pôr de lado o “bonito” pelo “real”, funcionando o
texto como um autêntico carro de assalto que investe contra o mundo, ao invés
de evitá-lo para fugir ao choque.
Lima Barreto sempre
soube fazer uso abrangente da linguagem para a comunicação militante de sua
arte. Foi acusado de incorreção e mau gosto, mas na verdade não se pode dizer
que não soubesse jogar com as palavras para delas extrair os efeitos estéticos
ou funcionais que a natureza do texto exigisse. Apesar de ter escrito sempre em
condições desfavoráveis, sua linguagem é rica de comunicação e de recursos
expressivos, o que não significa que tivesse poupado os puristas e os
gramatiqueiros inconsequentes ou que desse valor às regras padronizadas da
Academia. Nosso pensador sempre se caracterizou por uma atitude de rebeldia,
que procurou, por todos os meios – a diversidade, a equivalência, os
sincretismos – mostrar que a rigidez da gramática estava longe de corresponder
a uma realidade viva de linguagem em todos os seus matizes. Não faltou,
contudo, quem lhe cobrasse hábitos de escolaridade sistemática e pusesse de
lado a força de seu talento e de sua inventividade.
No entanto, à medida
que o tempo foi passando e os males da sociedade brasileira persistiam,
vinculados ao mesmo sistema iníquo de tirania e opressão que vigorava em sua
época, a presença de Lima Barreto veio preencher uma lacuna inestimável no
espaço cultural brasileiro. Sua importância cresceu e, com ela, uma espécie de simpatia
veio somar-se, nos últimos anos, à trajetória do oprimido que, como tantos
outros, teve a palavra cassada, o pensamento violentado e a imaginação
reprimida. Mais do que o valor literário, passou-se a admirar a firmeza do gesto
que soube desvendar as contradições decisivas do sistema que o marginalizava. Além
do exemplo do escritor corajoso, que não recuou um passo na luta pelo seu
direito à liberdade, viu-se nele um precursor da renovação temática e o
defensor intransigente de uma literatura autenticamente nacional. Uma espécie
de dolorosa cumplicidade fez dele o admirável anti-herói dos anos 20 no Brasil
e, através dela, compreendeu-se o alcance social e humano de sua resistência,
de seu inconformismo ante à marginalização da verdade e, sobretudo, de sua
consciência acerca do logro que a desfigurava. De repente, o romancista que era
lembrado apenas por ter feito de Policarpo Quaresma o Dom Quixote brasileiro,
passou a ser valorizado pela profunda consciência social que emanava de seus
livros.
Livro para consulta
ANTÔNIO, João. Calvário e Porres do Pingente
Afonso Henriques de Lima Barreto, Rio de Janeiro, Editora Civilização
Brasileira, 1977.
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