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Desejo e clausura

Pintura Os Amantes de René Magritte


Os que estão familiarizados com a chamada “literatura erótica”, não desconhecem que o tema das relações sensuais dos religiosos confinados em seminários e conventos é um dos tópicos mais comumente explorados e escritos predominantemente por homens. Estão aí, para confirmar, A religiosa, de Diderot, as Memórias de Casanova ou as Crônicas Italianas de Stendhal. Mas apesar do título e dos comentários sensacionalistas de certa imprensa, quando ocorreu sua publicação nos EUA, quem for ler A Vida Sexual dos Papas e, principalmente, em As Freiras Lésbicas encontrará descrições um tanto ambíguas de cunho erótico, pode se preparar. O relato histórico demonstra a total insatisfação do clero, motivo do abandono dos votos o que demonstra que mantém posições dissidentes.
Esse tédio e o vazio existencial decorrente do poder, da riqueza e a posição que o papado trazia está muito presente em todos os capítulos do livro, e a conotação dos homens é, às vezes, tão abrangente, que poderia incluir toda a legião dos papas, das madres e freiras que não se mostram muito satisfeitos por viverem num mundo de estrutura patriarcal. Como refúgio, alguns deles encontram alívio, regularmente, nos braços de seus amantes. Porque, entre os perfis expostos, há de tudo do ponto de vista sexual nas aventuras secretas, ou, às vezes, inteiramente públicas: homossexualismo, zoofilia, sadismo e orgias. Comprovando a vida inteiramente devassa da decadente corte papal, nas noitadas promovidas pelos Bórgias em Roma, a luxúria dos tempos de Leão X, Alexandre VI, Clemente VII, Inocêncio X, Gregório XIII, entre tantos outros, num mundo de libertinagem onde tudo valia, em nome do desejo. Durante séculos os pontífices impuseram a obrigação da castidade de quase um quarto da população mundial.
Muito mais que os aspectos estritamente sexuais, o que ressalta da história dos componentes do clero é a insatisfação quanto aos papéis compulsórios reservados habitualmente às mulheres, a busca de uma vida comunitária fora dos esquemas limitados da família nuclear e a incompatibilidade encontrada na sociedade secular atual para a vivência das experiências espirituais mais profundas. Sem falar, é claro, da insatisfação quanto ao papel das mulheres dentro da Igreja Católica. Através deles, cai o mito de um monolitismo imposto pela hierarquia, pois mesmo dentro dos conventos, chegaram os reflexos das transformações das últimas décadas, que hoje se tenta bombardear.
Por outro lado, o catolicismo (e outras religiões derivadas da tradição judaico-cristã) se cristalizou em torno da repressão da sexualidade. Mas, como já afirmou um moralista cético, “quando se expulsa a natureza, ela retorna a galope”. Em mosteiros ou fora deles. No caso específico das mulheres, durante muitos séculos, elas foram confinadas em conventos não porque tivessem vocação religiosa, mas porque eram forçadas pelas famílias (como castigo ou por motivos de herança). Esperar delas uma castidade a toda prova seria, no mínimo, ilusório. Algumas das grandes amorosas, como Heloísa ou Mariana Alcoforado, foram também religiosas.
A maioria da população, hoje, não se surpreende mais com as acusações de pedofilia que denunciaram alguns setores da Igreja, talvez não imagine que, no passado, nos ambientes enclausurados, as paredes estão encharcadas de histórias de amores, de paixões, transgressões, hipocrisias e de vinganças de papas famosos que, outrora, usufruíram do trono de São Pedro como nascente da pedofilia, de lascívia, do homossexualismo, de luxúria e escândalos, que marcavam os costumes europeus do início da Renascença e o século XVIII, quando o Vaticano era um feudo disputado entre famílias poderosas. Ao contemplado, que ali chegava, pela força do dinheiro, ou dos canhões, tudo era permitido. As biografias desses homens e dessas mulheres e da simonia no meio eclesiástico, dos estratagemas políticos, complementados por suas perversões, são expostas nestas edições pelas ex-freiras Rosemary Carb e Nancy Manathan, além da corajosa irreverência do escritor britânico Nigel Cawthorne.



A VIDA SEXUAL DOS PAPAS
Nigel Cawthorne
Tradução: Thais Rodegheri Manzano
História / Sexualidade
352 páginas
Prestígio Editorial
Ediouro Publicações Ltda.
2002


AS FREIRAS LÉSBICAS
Rosemary Carb e Nancy Manathan
Tradução: Diogo Borges
Biografia / Sexualidade
399 páginas
Editora Best Seller
1987



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