Em Ecce Homo, pensador alemão propõe a verdade
como o encontro com o mundo e com o outro
Para Nietzsche, não
há nada que o homem conheça menos do que si próprio. Nesse sentido, o
“conhece-te a ti mesmo” de Sócrates soa como uma ironia, mas também como um
desafio. É verdade que os séculos 19 e 20 fizeram ruir grandes certezas e
lançaram ainda mais dúvidas sobre o nosso conhecimento do mundo e de nós
mesmos, mas parece que Nietzsche resume perfeitamente tudo isso quando diz que:
“Até agora proibiu-se sempre, em
princípio, somente a verdade.”
De fato, essa não
deixa de ser uma estranha afirmação para quem diz tantas vezes que a “história da verdade” é, no fundo, a
história de uma mentira. Mas há que se entender bem o que Nietzsche quer
dizer. Essa é, aliás, uma preocupação que o próprio filósofo alemão expõe no
prólogo de seu instigante Ecce Homo (ou
Como Alguém se Torna Aquilo Que É): “Ouçam-me. Pois sou tal e tal. Sobretudo,
não me confundam.” É assim que Nietzsche inicia essa verdadeira introdução
(mas também conclusão) a si mesmo e a sua obra. Ele não quer que o vejam como
um monstro moral, mas prefere o papel de sátiro ao de santo.
Em sua bela edição de
bolso, Ecce Homo apresenta, logo de
início, essa simples (ou nem tanto) questão da verdade: o homem refugia-se nos
ideais que criou para si. Tudo no homem é criação, produção, mentira, a começar
pela maneira como ele próprio se vê. Solipsismo levado ao extremo, mundo
próprio: isso é a cultura. A fuga para os ideais não é cegueira, diz Nietzsche,
mas covardia, impossibilidade de aceitar a vida como ela é. A verdade parece,
nesse caso, estar do lado do mundo ou, pelo menos, diz respeito a algo que o
homem insiste em não viver. E esse algo é a própria existência: o seu lado mais
sombrio, mais problemático, mais doloroso. No fundo, os homens querem apenas as
alegrias, mas, ao negar uma parte da vida, eles acabam negando a existência
inteira.
Sem dúvida, Nietzsche
tem horror do conceito de verdade como essa coisa demasiado lógica, pura,
humana, que não ofende ninguém, que não põe em risco o castelo de areia que
construímos para nos abrigar do mundo. Verdade apaziguadora, exatamente porque
não é verdade. Toda verdade é um encontro com o mundo, com o outro, com o
“fora” e assim, ela é no mínimo desconcertante, vertiginosa, algo que põe o
pensamento em movimento. Sem dúvida, há algo de kantiano e, mais ainda, de
schopenhaueriano, em certas observações de Nietzsche. Em muitos momentos, o
mundo aparece realmente como um ilustre desconhecido, algo que se vislumbra
apenas por uma lente embaçada: a coisa em si, inacessível. Mas Nietzsche não se
mantém muito tempo nesse percurso. Seus olhos estão abertos demais para ver
que, embora o mundo seja “a minha representação”, existe indubitavelmente um
abismo entre os ideais humanos (os sonhos de grandeza da nossa espécie, nossas
verdades bem estabelecidas) e o mundo do “aqui e agora”, mundo silencioso e
ruidoso ao mesmo tempo, mundo fugidio, que nunca se mostra com facilidade, mas
que está sempre aqui e ali, e em toda parte, para quem quiser e puder ver.
Sim... dentre tantas
coisas que Nietzsche trata em seu Ecce
Homo , chamamos a atenção para o que ele diz acerca da potência do espírito
para suportar a verdade: “O quanto de
verdade suporta um espírito” Isso é ser um filósofo! Refugiar-se nos sonhos,
nas quimeras, nos ideais, nas crenças mais absurdas, acreditar mais no
invisível do que nos sentidos, na carne, na vida, eis a verdadeira forma do
niilismo. Em geral, os que acusam Nietzsche de ser niilista são exatamente
aqueles que insistem em manter seus olhos voltados para o “nada”, enquanto os
fecham para o esplendor da vida. Eles se negam a viver a grande aventura da
existência. E depois o que resta é apenas chorar pelo tempo perdido. A vida é
dura, óbvio, mas também exuberante para quem sabe viver, para quem não foge
dela. Eis o segredo dos fortes: ser aliado da vida.
É por isso que, nesse
breve livro (mas de uma beleza fulgurante e de uma força monumental), Nietzsche
se volta também para questões básicas como a alimentação, a escolha do melhor
lugar para se viver, etc, porque sabe bem – e aprendeu a duras penas – que
esses são problemas mais importantes e mais essenciais para a vida do que a
reflexão vazia sobre o além. Como diz Nietzsche, é preciso uma nova saúde para uma nova filosofia: uma filosofia que
afirma o “sentido da terra”, a existência em todas as suas facetas, sem medo,
com paixão e potência.
Em Ecce Homo, nosso encontro é com o
próprio Nietzsche. Ali, ele põe à prova o “conhece-te a ti mesmo”. Nietzsche se
mostra por inteiro, fala de seus bons e maus encontros, das influências sobre o
seu espírito, da sua vida, mas também de suas obras, do que cada uma delas
representou. A idéia grandiosa do eterno retorno, o seu sonoro, ao mesmo tempo,
benévolo “Sim” à vida, no que ela tem de melhor e de pior... E Nietzsche
conheceu o “pior”: a dor, a doença, o sofrimento. Sua grandeza, no entanto, foi
sofrer sem jamais “endurecer”, sem perder a percepção do quanto é belo existir
e estar plenamente vivo.
Sobre
esse ponto, Nietzsche dá lições magistrais. Ele conheceu a doença e a saúde,
quase em igual proporção. Soube ver o mundo e as coisas pela ótica do doente e
também com os olhos transbordantes de saúde. Mas nem quando esteve doente, ele
deixou-se minar pelo ressentimento (“porque
estar doente é uma forma de ressentimento”). Ele jamais odiou a vida por
isso. A sua genialidade, que – no fundo – justifica plenamente o seu orgulho
(ele não tem pudor em dar aos capítulos de seu livro títulos como: Porque escrevo tão bons livros, Porque sou
tão sábio), é a sua força brutal para viver e para procurar sempre os bons
remédios para si mesmo. Como ele próprio diz, “para curar-se, é preciso, no fundo, ser são”. Enfim, isso é o Ecce Homo isso é Nietzsche em seu estado
mais puro. É preciso coragem para encará-lo de frente. Sigmund Freud, por
exemplo, confessou que nunca teve coragem de ler Nietzsche. E a pergunta é:
quem tem?
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