Toda a escritura de Fiódor
Dostoiévski (1821-1881) questiona de forma obsessiva a culpabilidade e a
confissão. No limite, digo que seus personagens não matam para mudar o mundo
nem para melhorar sua condição de vida nem por vingança... mas só para falar do
crime, nomeá-lo, confessá-lo. Na origem, Raskólnikov, do livro “Crime e Castigo” (lançado em 1866, seu
sétimo livro), não tem o desejo de matar na alma nem vontade de ser justiceiro.
Ele é quase um fantasma. Ingênuo, inocente, quase patético. Ele imagina seu
crime como uma cena de sonho, um sonho que ele afasta e que ao mesmo tempo o
obceca. Por algum tempo, ele não tem nenhuma razão intelectual para cometer o
crime, passar ao ato. Aliás, no início do romance, ao pensar no assassinato da
velha usurária, Raskólnikov nem sabe como nomear seu crime. Ele faz menções à “empreitada”,
“ao ato”, “aquilo”.
“Crime e Castigo” propõe muito bem o problema da liberdade total. O
seu herói, o estudante Raskólnikov, cujo nome se origina da seita Raskólnikovs
– russos cismáticos que no século 17 não aceitaram a versão dos livros santos
aprovada por um sínodo por ordem do patriarca Nikone, preferindo ser
perseguidos e deportados – é, pois um cismático... Cometendo seu crime, ele se
separa da comunidade humana (quer ser total para dominar o próximo). Cometido o
crime, ele não poderá mais viver, se não voltar a essa comunidade, acusando-se,
confessando-se, e expiando o seu ato cuja virtude – assim que foi cometido –
está inteiramente perdida. E assim o romance famoso também a história de um
remorso, muito mais que a de um crime.
O crime de
Raskólnikov é, em última instância, paradigmático da condição humana: o que o
homem é. Ainda assim, “Crime e Castigo”
é um romance sobre sofrimento, culpa e a possibilidade de uma nova consciência.
Um romance sobre um homem se tornando... A experiência final da verdade de
Raskólnikov é o epílogo de uma epifania tornada possível pela presença de
Raskólnikov nas memórias mais profundas da sua infância. O que Raskólnikov
finalmente experimenta, o leitor já havia “aprendido lendo o romance.”
Embora Raskólnikov
desmereça em parte o romance, “Crime e
Castigo” tem dinâmica bastante para reabilitá-lo e se manter como uma das
obras capitais de Dostoiévski e, precisamente, por revitalizar-se e fazer-se na
derrota da personagem. Pois, afinal, um texto não é representado pela sua
personagem mais importante, ou mesmo pela problemática que ela carrega. Um
livro impõe-se por seu conjunto, e só nele pode ser visto, as partes e os
planos que o constituem contribuindo todos na direção preestabelecida da ideia
geral, motivando-se e interagindo, criando e fazendo surgir, no fim, a
pretendida resultante do trabalho do artista.
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