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Compulsões fatais

 

 

Dentre as formas prazerosas contemporâneas se destaca o prazer de comer, como uma das maneiras de driblar ou escapar do mal-estar na cultura Além de estar associada à qualidade de vida, condição de saúde e beleza, a alimentação tem despertado o interesse acadêmico, resultando em número crescente de publicações sobre os hábitos alimentares e os rituais a eles relacionados. Presentes nos momentos mais marcantes da vida em sociedade, estes hábitos e rituais permitem compreender melhor padrões de culturas e mentalidades como instrumentos de comunicação, metáforas de afeto, necessidades de pertencer, expressão de identidade.

Na última década do século 20, a comida abriu portas para novos desejos, profissões, objetos de consumo, formas de relacionamentos, cerimônias de agregação, obras literárias e cinematográficas. Tornou-se cada vez mais evidente que, sob o domínio da linguagem, o comportamento de se alimentar extrapola o âmbito da necessidade e da nutrição. Tal comportamento me pareceu motivo, a um só tempo, de prazer e de sofrimento, em uma época em que a supervalorização da aparência física exibe características religiosas, tornando a obesidade um pecado capital e a dieta uma forma de expiação.

Na opinião de Angelina Bulcão Nascimento, autora do livro “Comida: Prazeres, Gozos e Transgressões”, as mudanças decorrentes dos novos prazeres e hábitos alimentares sofrem, não apenas a influência dos meios de comunicação que estimulam o sabor da novidade, mas da importação de hábitos que geram consequências no estilo de vida, nos papéis de sexo, de família e profissionais. O prazer de comer e de beber se desdobra em vários aspectos: a gastronomia, as peculiaridades dos gourmets, gourmands, glutões e foodies. E também em comportamentos compulsivos traduzidos no canibalismo, na gula, em suma, nos excessos. A autora teve o interesse em articular dois campos de estudo: Comunicação e Psicologia.

Reportagens sobre alimentação corpo e saúde, riscos alimentares, contradições da ciência, estimulando e condenando a comida também são citadas, no decorrer da obra, evidenciando o papel da mídia nos hábitos e costumes contemporâneos. Os depoimentos obtidos em suas investigações sugeriam a existência de sintomas inéditos do mal-estar experimentado pelo homem do século 20: anorexia nervosa, bulimia, tanorexia (dependência física ao bronzeamento artificial), lipofobia (fobia de gordura), corporalismo — termo usado por Maffesoli para designar a preocupação obsessiva com a aparência física, a saúde, a alimentação e a prática exagerada de exercícios; e da corpolatria — termo que designa as características de religiosidade, alienantes e narcísicas que adquirem os excessivos cuidados com o corpo. Alguns desses sintomas revelam um aspecto mortífero do prazer, capaz de destruir. Observou também que a obsessão pelo corpo, uma compulsão pós-moderna, tem atingido pessoas de várias gerações na última década, e cuja apresentação sintomática conjuga prazer e sofrimento, isto é, aquilo que a psicanálise e outros discursos contemporâneos denominam “gozo”, e que Sigmund Freud já havia detectado como o mal-estar na civilização.

Essas considerações a levaram a formular o problema que orientou a referida tese. Instigada a pesquisar como os meios de comunicação informam e estimulam alternativas para o corpo obter satisfação, abrindo caminhos para novas experiências sensoriais — saborear, cheirar, tocar, ouvir, ver, – que resultam em novos relacionamentos e novas formas de consumo, bem como estratégias para lidar com o mal-estar e o bem-estar. E também como as proibições, apresentadas e incitadas permanentemente pela mídia, propiciam conflito entre o prazer e a culpa de comer. Para melhor aprofundar o assunto, buscou na literatura psicanalítica alguns conceitos que, articulados com a comida, o corporalismo e a mídia, lhe ajudaram a compreender melhor alguns de seus aspectos. “Prazer”, “gozo”, “desejo”, serviram de suporte teórico ao trabalho.

Considerando que uma das marcas da contemporaneidade é a influência e importância que a mídia desempenha em nossas vidas, a escritora decide tomá-la ao mesmo tempo como tema e guia. Como guia, recorre à sua ajuda para detectar e selecionar algumas das principais formas que a sociedade atual encontrou para lidar com o mal-estar. Como tema, analisa o papel algo “esquizofrenizante” que a própria mídia desempenha ao se constituir, simultaneamente, como gerador ou propiciador de formas de combate ao mal-estar e fonte, ela mesma, de mal-estar, seja direta ou indiretamente.

Tais questões são tão relevantes quanto complexas, especialmente se levarmos em conta o antagonismo entre os primeiros e as segundas: a mídia que revela e estimula o consumo das inúmeras delícias da mesa é a mesma que apavora ao revelar os não menos inúmeros males que um possível excesso pode causar. Males do corpo e da mente. Pois às ameaças de doenças cardiovasculares, diabetes e, até mesmo, morte precoce, se juntam àquelas de rejeição social ou desconforto a quem não possui um “corpo perfeito”.

Pela originalidade de seu enfoque, pelo cuidado na pesquisa e no tratamento dos dados, dentro de uma área que, afinal, atinge todos nós, este livro não pode deixar de despertar grande interesse. E de ensinar a ver aspectos da realidade em que estamos imersos e, por isso, cegos mentalmente para eles. Um trabalho de fôlego proveitoso, enriquecedor, erudito e, em grande parte — o que parece cada vez mais raro — despretensiosamente divertido.

 

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