O absurdo mundo invisível e a dor
Concerto para Arranha-Céus
de Ronaldo Cagiano
151 páginas
LGE editora
Brasília, Distrito Federal
Ronaldo Cagiano produz contos curtos, escritos em linguagem tão concisa e fluente que, muitas vezes, chega a (ser) fusão de estilos: seu caminho vai do conto para o poema em prosa e, dele, para o fluxo de consciência. Seu estilo é direto e ágil, e suas narrativas apresentam os dramas de pessoas que se movem entre as expectativas de felicidade e realização que aprenderam a alimentar e a realidade crua e desumana, que as frustram e aniquilam. As relações humanas que apresenta comprovam que a realidade é degradada e cruel: as pessoas se maltratam e se ferem em vez de manter, no cotidiano, vínculos de carinho e respeito. Assim, marido e mulher estão sempre em conflito, pais e mães oprimem os filhos, amigos se confrontam e disputam o poder... Uma odisséia da degeneração feroz onde misturam as influências de Rubem Fonseca, Luiz Vilela, Dalton Trevisan, Nelson Rodrigues, Caio Fernando Abreu e o realismo fantástico de Franz Kafka e Gabriel García Márquez. Sua escrita sintética, fotográfica de um mundo invisível e contundente, pode ser considerada uma referência constante no trabalho de pesquisa de muitos estudiosos recentemente surgidos, como um pintor realista da Geração 90.
Tradutor das paixões e delírios das cidades
Cagiano ambienta seus contos nas cidades reconstituídas pela análise com o filtro da paixão e da literatura, São Paulo torna-se tão mítica quanto a Macondo, de Cem Anos de Solidão, de García Márquez. Por seu discurso denso, cortante, sua prosa transforma-se num jorro deixando aflorar a dor e a solidão que devoram a alma de prostitutas, funcionários esmagados pela rotina do ambiente de trabalho, filhos ressentidos, tipos paranóicos, suicidas, ou seja, aqueles personagens que vagam perdidos, à deriva, do rio da existência, que não encontram sentido em navegar de encontro à turbina da usina da sociedade, que dilacera e destrói com a violência do seu preconceito e alienação. Ele lança as suas personagens um olhar cúmplice e generoso, utilizando uma linguagem de extrema beleza poética, expondo e ampliando ainda mais esse universo de sentimentos em carne viva, como o sangue e a carne dão vida e autenticidade ao poema em prosa. Uma nova realidade, pois o mundo havia se tornado tão obscuro, tão insolúvel, que ele fez uma construção literária para dar conta literariamente daquilo.
O conto que abre o livro sobre o abuso sexual de uma criança, transforma-se num texto pesado e tocante, “cuja narrativa, em primeira pessoa, deixa vazar todo o ressentimento e o nojo que povoam a memória da personagem vítima do abuso (do livro Concerto para Arranha-Céus). Eu já tinha vinte e tantos anos e a única imagem que me povoava a mente com pavor e abjeção era aquele homúnculo, coxo, reles, vil, desaparecendo no quintal de casa como se nada tivesse acontecido..." É para dentro do universo psicológico dessa personagem, cuja vida foi arruinada pela violência, que Cagiano nos arrasta como numa enchente: a narrativa, delirante, - um jorro contido apenas por vírgulas - dá-nos a real dimensão do estado de choque e rancor em que se encontra a personagem.” – conforme comenta o escritor Geraldo Lima.
Todos esses locais verdadeiros ou imaginários, esses personagens como signos em rotação urbana, fazem parte do labirinto dessas metrópoles, incansavelmente percorridas por seus personagens solitários e outros que se sentem estrangeiros, ou inadaptados, de sensualidade e carência à flor da pele, durante as noites urbanas. Desse modo, as frias capitais de São Paulo e Brasília se transformam em um espaço de paixões abrasadoras. Por meio de uma prosa límpida, oriunda da linguagem de protocolo, se percebe haver afinidades estilísticas com Kafka, quando narrou o insólito, como a terrível metamorfose sofrida por Gregor Samsa, de “A Metamorfose”. Esta é uma característica definitiva em sua obra: a colisão entre a clareza absoluta da linguagem e o assunto opaco.
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