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A natureza do mundo



“Todos os indícios apontam para uma fase histórica,
de transição, de profundas modificações em todos os níveis
de nossa experiência comum.”



A filosofia oriental – em particular, a chinesa – procura compreender as leis profundas que regem o real, através da observação atenta da natureza. Essa se mostra como puro dinamismo, transformação incessante, de resíduos efêmeros. Essas reflexões têm relação com o momento que a nossa vida coletiva, como Nação – isto é, nossa política – atravessa. Não é à-toa que se fala tanto em desequilíbrio, desnível e desajuste social. Os dois princípios primordiais, Yin e Yang, são por isso concebidos de maneira dinâmica: Yang, o princípio ativo, move-se e pára; Yin, o princípio receptivo, abre-se e fecha. Tal dinamismo corresponde aos movimentos binários de todos os processos naturais: inspiração e expiração, expansão e contração, sístole e diástole, reunião e dispersão, aumento e diminuição etc.
A tese e antítese marxistas, por exemplo, foram concebidas a partir da observação da presença atuante desse dinamismo na evolução da vida material das sociedades humanas.
O retorno do reprimido, uma lei da psicanálise é, hoje, para o melhor pensamento contemporâneo, uma lei histórica, a fornecer continuamente as suas provas. O trabalho incessante do inconsciente coletivo aflora à superfície, em termo de ação, seja em fatos e acontecimentos, que rompem as barreiras do previsível. Mais uma vez, a criação pura, que é o real, surpreende o cálculo, o computadorizável, arrancando um alimento aparentemente improvável, mas efetivo, dos recessos mais obscuros da psiquê. O retorno do reprimido manifesta na superfície pública, no plano político: o confronto dos “sem terra” com os fazendeiros, a reforma agrária, o salário baixo e a falta de estímulo dos professores, a onda de greves, a agitação da população pela desigualdade social... O reprimido reivindica os seus direitos, transfigurado pela própria repressão que o silenciou. O famoso desenvolvimento histórico é pluridimensional, em vários níveis, quer dizer, imprevisível.
A impotência final das tentativas de controle absoluto, por mais violentas ou cruéis nos seus métodos, perde suas máscaras. Da história pública, cristalizada nos meios de comunicação de massa, para a história secreta, interna, que determina - em última análise - o comportamento dos homens numa civilização que arrebenta aos poucos. A verdade é que por maiores, mais persistentes ou obstinados os nossos esforços por adaptação às codificações, por ajustamento generalizado, o trabalho incessante e secreto entra em erupção.
Os sinais externos já são visíveis a olho nu: aguçamento inevitável das contradições, deterioração sem remédio dos velhos costumes, desorientação, dispersiva ansiedade e - portanto - reiterando promessas de um Apocalipse.
A cultura do medo, do consumismo desenfreado e a falta de engajamento impregnaram nosso pensamento científico e nossa orgulhosa razão, dos quais somos meros espectadores de um espetáculo podre, bárbaro e sem graça.
Hoje, sentimo-nos impotentes e insatisfeitos diante da situação. É uma verdade, encare de frente, uma cultura concebida sem bases ou objetivos. A corrente da consciência aduba o terreno para um novo estilo de pensar, ajustando a própria mente e o coração à mais estrita, genuína realidade – única maneira de encarar a mediocridade, a miséria, ao extremo do capitalismo selvagem e responder, de maneira adequada aos seus desafios. Norman Brown diz que o verdadeiro Apocalipse, de que tanto falam, é mental.
Paramos o mundo, deixamos que ele se desmanche, na cabeça. É a mente que revoluciona a chamada realidade concreta - social, econômica e política - até que floresça em ação criadora ou comportamento artístico. Todos os indícios apontam para uma fase histórica, de transição, de profundas modificações em todos os níveis de nossa experiência comum. O fato é que não podemos viver para sempre do mesmo jeito. A natureza do mundo é ser eternamente incompleta e, portanto, puro movimento e transformação.



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