Self portrait de Jean Cocteau
Artista encarnou como poucos o inconformismo e,
como poeta, se aproveitava do desconhecido
Para Jean
Cocteau (1889-1963) “um poeta não deve fazer outra coisa além de poesia”. Mas,
ninguém, como ele, foi tão artista num sentido genérico: deixou sua marca na
poesia, mas também no romance, fez um teatro inesquecível e um cinema ainda
mais perene, em que a influência do que se convencionou chamar de artes
plásticas ou visuais esteve sempre presente.
Como definir um homem assim?
Multimídia é a palavra que, hoje, o jogaria na vala comum daqueles que são
cegamente apaixonados pela tecnologia. Francis Ramirez e Christian Rolot,
professores nas universidades Paris 3 e Montpellier 3, integrantes da equipe
responsável pela edição das Obras Completas de Cocteau pela Pléiade (o primeiro
volume, dedicado à sua poesia, já foi lançado), acharam uma outra forma de
defini-lo: Jean Cocteau – L´Oeil
Architecte (Jean Cocteau – O Olho
Arquiteto, ACR Édition,326 págs.) é o nome de um belo livro de arte que
eles assinam, lançado em 2001 na França, que faz uma espécie de “perfil
artístico”do francês (esse foi apenas um dos lançamentos de 2000 que ajudaram a
manter a obra de Cocteau – leitura obrigatória para os jovens franceses que
querem entrar na universidade e enfrentam o Bac, um vestibular unificado -
viva).
O arquiteto, claro, tem um sentido
figurado, de criador. E o olho, como mostram os autores, sempre teve um papel
central na obra do artista. “O olho, na obra gráfica de Cocteau tem a mesma
presença obsessiva que o sexo”, escrevem. Seria a vertente metafísica de sua
criação.
A inspiração de Ramirez e Rolot,
contudo, veio de uma obra do próprio Cocteau que, em 1917, em La Création du Monde , define: “Eu/ E
tudo se constrói em torno/ de meu olho arquiteto/ e de minha orelha”. “Quando
reconstruímos seu olhar, encontramos permanentemente a ideia da invenção”,
afirmou Rolot, de Montpellier, no sul da França. Na sua opinião, Cocteau, como
poucos, era capaz de tirar proveito do desconhecido.
Raio
X
Para Rolot, o melhor exemplo para
ilustrar essa capacidade seria o cinema, onde, graças ao fato de não ser um
“cineasta” (nunca aceito ser qualificado no sentido como um profissional), no
sentido convencional, foi capaz de anunciar em seus filmes a nouvelle vague de François Truffaut e
Jean-Luc Godard.
A ignorância era, para ele, fecunda,
pois permitia que buscasse novos tempos e novos modos de contar histórias. O
cinema para Cocteau era, portanto, uma arte privilegiada, capaz de provar a
existência real do que parecia uma irrealidade, uma espécie de raio X (ou
endoscopia) do inconsciente.
Hoje, a ideia de que um artista não
precisa se prender a apenas um ramo da produção é corrente, mas, no tempo em
que Cocteau produziu sua obra, um ditado bastante popular na França era: “Bom
em tudo, bom em nada”. O enfant terrible Cocteau,
no entanto, ousou ser apenas bom em tudo. Ele escrevia sua poesia em cadernos
de desenho.
Escrevendo desenhos, desenhando
palavras, filmando muito e montando imagens, Cocteau esteve no centro da
produção cultural francesa entre as duas guerras mundiais, como registrou certa
vez o crítico teatral brasileiro Décio de Almeida Prado, lembrando inclusive
que dois ícones da vanguarda modernista do País – Tarsila do Amaral e Oswald de
Andrade – chegaram a entrar em contato direto com Cocteau e sua criação.
Política
Durante a ocupação alemã na França,
Cocteau viveu o paradoxo de incomodar os nazistas, mas também a resistência
francesa.
Os nazistas não gostavam de Cocteau
porque suas peças e filmes tocavam em pontos que não agradavam em nada aos
ocupantes, especialmente quando o assunto era sexualidade. Com a montagem de Les Parents Terribles (Os Pais Terríveis, uma criação indireta
do seu romance, Les Enfants Terribles),
Cocteau, já bastante perseguido por suas preferências sexuais, é acusado de
fazer apologia ao incesto.
Apesar da perseguição dos nazistas,
ele se tornou alvo da resistência por escrever, em 1942, na revista Coemedia, um artigo em defesa do
escritor alemão Arno Breker, que expunha suas obras na Orangerie. Breker era
uma espécie de “escultor oficial do nazismo”, responsável por conduzir Hitler
em Paris em 1940, logo após a assinatura do “armistício”.
Cocteau justificará a saudação (“Eu
vos saúdo, Breker. Eu vos saúdo da alta pátria dos poetas, pátria em que as
pátrias não existem mais, a menos na medida em que carreguem o tesouro
nacional”) afirmando que ele era um amigo que conhecera 20 anos antes, fora de
qualquer contexto político. Além disso, Breker poderia ajudar a evitar que os
trabalhadores do cinema francês fossem obrigados a receber ordens da indústria
alemã. Quando os alemães foram derrotados, defenderam Cocteau gente do calibre
de Jean-Paul Sartre e Paul Éluard. Seu erro durante a guerra acabou por ser
perdoado.
Se o comportamento artístico de
Cocteau marcou sua época, sua vida também não seguiu regras pré-estabelecidas,
e muito do que viveu lembra mais a contracultura dos anos 60 e 70 que épocas
supostamente bem comportadas. Sua vida ajuda não apenas a entender sua obra,
mas também a manter o interesse por Jean Cocteau que encarnou, como poucos, o
anticonformismo.
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