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Universo particular e sagrado



Ela anseia por uma nova percepção do mundo a seu redor,
a ser obtida não apenas pela razão mas também pelos sentidos





“Jardim fechado és tu, minha irmã, esposa minha, manancial fechado, fonte selada.”
Cantares 4 vs12*


“O Senhor tem o controle e toda a autoridade de cuidar do jardim.”
Evangelho de Jesus Cristo, João,
capítulo 15, versículos 1 ao 6





        

            Considerado refúgio sagrado, o jardim simboliza também o cosmos, a harmonia os quais, muitas vezes, comparado ao paraíso terrestre, em que a representação do jardineiro, no caso, a poeta Raquel Naveira, aquela que zela e realiza a construção do jardim, configura o ser criador desse pequeno universo. Destaco que os jardins são locais simbólicos presentes em diversas culturas, como a de Roma, a da Grécia, a do Egito, a da Pérsia, a da Arábia e do Oriente. Isto desde a antiguidade, sejam eles externos, internos, labirínticos, secretos, tumulares, murados, dentre outros.
            Curioso notar que, em diferentes culturas, o significado do jardim varia sutilmente, das Hespérides na mitologia grega, do Éden na Bíblia, ao visual como o jardim japonês que carrega a simbologia mística, por trás da beleza, harmonia e arte paisagística que o constitui. E quando surgem nos sonhos, representam a prosperidade, a paz e os desejos. Uma vez que, essencialmente, todos carregam a simbologia do sagrado e a representação do cosmo. Muitos reis delegavam a construção de um jardim nas proximidades do palácio o qual simbolizava a riqueza natural e espiritual. Mas séculos antes de Nabucodonosor existir, Salomão utiliza a expressão “jardim fechado” para com a amada Sunamita.
            O poeta grego Hesíodo falou aos pastores de cabras do monte Hélicon sobre “Os Trabalhos e os Dias ou As Obras e os Dias”. É mais melancólico falar aos homens e mulheres da nossa sociedade sobre os prazeres e os dias se, a vida fosse suportável sem os prazeres. E mesmo sustentada por um maravilhoso espírito de observação, por uma inteligência ágil, penetrante e verdadeiramente sutil. Estas paisagens de Jardim Fechado - Uma Antologia assinalam tanto as horas da natureza, através de quadros harmoniosos do céu, do mar, das flores, das folhas, das matas, da água do rio e das florestas na memória, seja resgatando as guerras do Paraguai e do Contestado (Caraguatá), a imigração árabe e armênia, de temas sacros, divinatórios, extrapola sobre a imagem da conquista do México pelos espanhóis. Junto à loucura real de Antonin Artaud, a exaltação sem tempo e nem espaço dos signos da poesia, o portão de ferro (“Quem fosse ao portão de ferro / Atravessaria a neve? / O pântano / A solidão? / Daria um berro de dor / Contorcendo-se entre as grades?”) e a fábula na infância, os nus frontais até o assombroso que lhe derrama as coisas do cotidiano. Como as horas humanas, por meio de retratos fiéis e pinturas de gênero, de maravilhoso acabamento.
            A poeta compraz-se igualmente em descrever o esplendor desolado do sol poente e as agitadas vaidades das almas esnobes dos conquistadores e imperadores. Excede em pintar as dores elegantes, os sofrimentos artificiais, que igualam, ao menos em crueldade, os que a natureza nos prodigaliza com solicitude maternal. Confesso que esses sofrimentos inventados, essas dores criadas pelo engenho humano, essas dores artísticas, me parecem infinitamente interessantes e preciosas, e sou grato a Marcel Proust por ter estudado e descrito alguns de seus tipos seletos.
            Neste século, grande parte das letras brasileiras está imersa no chamado retorno ao decandentismo, corrente cujos representantes mais radicais se comprazem num estetismo não só literário, mas também comportamental (do dandismo) entregue a uma espécie de sensualismo filosófico semelhante ao de Epicuro.
            Contra esse tipo de literatura, contra essa egolatria narcisista decadente se insurge Jardim Fechado - Uma Antologia, que Raquel Naveira selecionou num momento em que a literatura cheira furiosamente à hipocrisia, à convenção, ao mofo e permeia pela fogueira das vaidades; em que me parece urgente fazê-lo tocar de novo a terra e pousar simplesmente um pé no solo. Por um lado, transmite o apego à vida por parte de uma cultora do eu e da sinceridade; por outro, prega um vitalismo semelhante ao de Nietzsche. Por fim, está também presente no livro o tão propalado classicismo grego. Basta notar sua simplicidade de estilo, em oposição à sintaxe arrevesada tão ao gosto dos decadentistas.
            Atrai-nos e nos retém numa quente atmosfera de estufa, por entre orquídeas sábias que haurem na terra sua beleza. De súbito, no ar pesado e delicioso, passa uma seta luminosa, um clarão que, como um raio atravessa os corpos. Como um traço a poeta penetrou o pensamento secreto, o desejo inconfesso. Sua poesia apurada sabe traduzir sentimentos e impressões: “Queria que me amasses / Como a Bela amou a Fera, / Apaixonou-se mesmo sendo ela / Uma alma decaída, / Amarrada / Num monstruoso corpo de lobo. / Queria que me amasses / Como Riobaldo amou Diadorim, / Sem saber quem era / Aquele ser ambíguo / Lagarto verde do sertão, / Vestido de homem, / Seios presos no gibão. / Queria que me amasses / Como Leda amou o cisne, / Europa, o touro / E Dafne, a chuva de ouro. / Queria que me amasses / Na minha essência de flor, / De pássaro, / De escultura / E súbito, eu me revelaria inteira: / Braços, / Pernas, / Cintura / E te ofertaria, / Toda pura, / Limpando tuas lágrimas de dor e prazer, / O prêmio de tua longa espera.”

            É o seu modo de ser e a sua arte. Mostra aí uma segurança que surpreende numa arqueira habilidosa e tão madura. Não é absolutamente inocente. Mas é tão sincera, tão autêntica e assim agrada. Existem nela traços dos heterônimos Alberto Caeiro e Ricardo Reis (Fernando Pessoa) junto ao modernismo romântico de Charles Baudelaire.
            Livro feliz o dela! Raquel Naveira trocou o desejo e a vida pela leitura, pela literatura e pelo sonho. Suas emoções floresceram; cada sensação tem o fervor de uma experiência espiritual. Uma relação metafísica e telúrica. Ela anseia por uma nova percepção do mundo a seu redor, a ser obtida não apenas pela razão mas também pelos sentidos.
           


           
* Este texto se encontra em Cantares (Cânticos dos Cânticos) que faz parte dos livros poéticos do Antigo Testamento, escrito pelo rei Salomão, filho do rei Davi com Bate-Seba.








JARDIM FECHADO - UMA ANTOLOGIA
Raquel Naveira
Literatura Brasileira. Poesia. Poesia Brasileira
Vidráguas
438 Páginas
Porto Alegre - Rio Grande do Sul
2015







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