O projeto do
iluminismo, como proposta de libertar os homens das teias da natureza desconhecida
e ameaçadora ao fazê-lo, criou-se outro mito mais poderoso, o fetiche da
ciência e da técnica, que subjuga a natureza e os homens. Deve-se desconfiar da
sociedade do progresso e da técnica que domina a natureza e a reduz ao
idêntico, exclui aquilo que não se enquadra na totalidade fechada e niveladora
e cria os coletivos: o homem tecnológico desprovido de emoções. Também não se
pode confiar no modelo de sociedade contemporânea, em que o mercado, sob o
pretexto, de uma vida feliz e do bem-estar, dita as regras, administrando a
vida das pessoas, privando-as de subjetividade e anulando o que é da ordem do
particular: “o processo de coisificação do homem e da consciência coisificada”,
pelo pensamento de Theodor Adorno. A
pessoa, como mero consumidor, apenas um objeto desta indústria. Desse modo,
instaura-se a dominação natural e ideológica. Essa dominação tem sua mola
motora no desejo de posse em constante renovação pelo progresso técnico e
científico, e sabiamente controlado pela indústria cultural. Nesse sentido, o
universo social, além de se configurar como um mundo de “coisas”, constituiria
um espaço hermeticamente fechado. Nele, todas as tentativas de liberação estão
condenadas ao fracasso.
Ao tolher a
consciência das massas e instaurando o poder da mecanização sobre o homem, a
indústria cultural cria condições cada vez mais favoráveis para a implantação
do seu comércio fraudulento, no qual os consumidores são continuamente enganados
em relação ao que é prometido, mas não cumprido. Nas situações eróticas apresentadas
pelo cinema, o desejo suscitado ou sugerido pelas imagens, ao invés de
encontrar uma satisfação correspondente à promessa nelas envolvida, acaba sendo
satisfeito com o simples elogio da rotina. Não conseguindo, como pretendia,
escapar a esta última, o desejo divorcia-se de sua realização que, sufocada e
transformada em negação, converte o próprio desejo em privação: a indústria cultural
não sublima o instinto sexual, como nas verdadeiras obras de arte, mas o
reprime e sufoca. Ao expor sempre como novo o objeto de desejo (o seio sob o
suéter ou o dorso nu do herói desportivo), a indústria cultural não faz mais
que excitar o prazer preliminar não sublimado que, pelo hábito da privação,
converte-se em conduta masoquista. Assim, prometer e não cumprir, ou seja,
oferecer e privar, são um único e mesmo ato dessa indústria. A situação erótica
une à alusão e à excitação, a advertência precisa de que não se deve, jamais,
chegar a esse ponto. Tal advertência evidencia como a indústria cultural
administra o mundo social.
Dos limites, porque a
crítica de Adorno resulta em um hábil
trabalho de desmontagem, mostrando os fatores limitantes que perpassam os
projetos iluminista, tecnológico e científico e o atual modelo de sociedade do
mundo da mercadoria e da indústria cultural. Em toda essa trama há paradoxos.
Na tentativa de conhecer a natureza, o esclarecimento atribui à ciência o status de guardiã da verdade, relegando
ao indivíduo a condição de sujeito adaptado e submisso, o esclarecimento perde
a sua dimensão reflexiva, porque faz com que o cidadão aja sob o compasso
ditado pelo ritmo da maquinaria do progresso.
A irrefreável
maldição do progresso, uma regressão a um estado de dominação, à racionalidade
técnica (racionalidade da dominação) instrumentalizada: quando o progresso
passa a ter um fim em si mesmo, pode ter efeitos funestos. O desenvolvimento
tecnológico desvinculado de uma destinação humana concreta pode ser usado para
uma dominação cega, como a história recente comprova. As guerras nas quais se
usa o moderno arsenal tecnológico, os projetos friamente elaborados para o
extermínio em massa, entre outros acontecimentos meticulosamente controlados
pela técnica, constituem-se exemplos do lastro desastroso do poder tecnológico.
E, por fim, o apaziguamento feito através do controle da consciência
individual, por meio de uma política conciliatória e pacificadora de conflitos,
sob o pretexto de um mundo sem fissuras, de felicidade e bem-estar para todos
os “engajados”, acontece à custa de um pensamento autônomo e não identificado.
A racionalidade
técnica hoje é a da própria dominação, como o caráter repressivo da sociedade
que se autoaliena, que cria sujeitos estandardizados e nivela as necessidades
de todos para que consumam o mesmo produto produzido em série. O mesmo produto
para a mesma necessidade, e (a) necessidade que talvez pudesse fugir ao
controle central, já está reprimida pelo controle da consciência individual. A
indústria cultural explicada pelo aparato tecnológico e pelo progresso, sob a
pretensão de facilitar a vida das pessoas, na verdade funciona como impeditivo
do pensamento autônomo.
Em vez de apreender e
adotar as crenças mitológicas, a civilização moderna se percebe cada vez mais
presa às teias do progresso e ao domínio da técnica e da ciência que afloram
como um novo mito mais poderoso, embora sutil. Se o mito já era uma forma de
esclarecimento, este acaba se revertendo em mitologia. A busca do conhecimento
científico e tecnológico para desvendar os mistérios da natureza e dominá-la,
processo pelo qual os homens acreditaram poder se libertar das potências
míticas pela racionalização, resultou paradoxalmente no seu oposto: o homem (e
com ele a natureza) tornou-se refém do aparato tecnológico/científico, fim para
o qual se convergem todas as ações humanas. A razão iluminista que, a
princípio, teria como destinação o resgate do seu conceito crítico e
emancipador, proporcionando uma condição verdadeiramente humana às pessoas,
possibilita, ao contrário, um retorno à barbárie e à regressão a um tipo de
violência, primitiva em suas formas de manifestação. Em outras palavras, o
homem esclarecido é ao mesmo tempo o homem nazifascista, o especialista,
tecnologicamente perfeito que projeta máquina de destruição em massa, que pensa
a logística para melhor fluidez dos contingentes humanos aos campos de
extermínio. O sujeito esclarecido que ostenta uma impecável eficiência do ponto
de vista do domínio da técnica, é simultaneamente, incapaz de pensar nas
consequências e no alcance maléfico de seus inventos e ações, porque está
“enfeitiçado” por esse novo mito – a ciência.
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