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Medusas do século 21


O projeto do iluminismo, como proposta de libertar os homens das teias da natureza desconhecida e ameaçadora ao fazê-lo, criou-se outro mito mais poderoso, o fetiche da ciência e da técnica, que subjuga a natureza e os homens. Deve-se desconfiar da sociedade do progresso e da técnica que domina a natureza e a reduz ao idêntico, exclui aquilo que não se enquadra na totalidade fechada e niveladora e cria os coletivos: o homem tecnológico desprovido de emoções. Também não se pode confiar no modelo de sociedade contemporânea, em que o mercado, sob o pretexto, de uma vida feliz e do bem-estar, dita as regras, administrando a vida das pessoas, privando-as de subjetividade e anulando o que é da ordem do particular: “o processo de coisificação do homem e da consciência coisificada”, pelo pensamento de Theodor Adorno. A pessoa, como mero consumidor, apenas um objeto desta indústria. Desse modo, instaura-se a dominação natural e ideológica. Essa dominação tem sua mola motora no desejo de posse em constante renovação pelo progresso técnico e científico, e sabiamente controlado pela indústria cultural. Nesse sentido, o universo social, além de se configurar como um mundo de “coisas”, constituiria um espaço hermeticamente fechado. Nele, todas as tentativas de liberação estão condenadas ao fracasso.
Ao tolher a consciência das massas e instaurando o poder da mecanização sobre o homem, a indústria cultural cria condições cada vez mais favoráveis para a implantação do seu comércio fraudulento, no qual os consumidores são continuamente enganados em relação ao que é prometido, mas não cumprido. Nas situações eróticas apresentadas pelo cinema, o desejo suscitado ou sugerido pelas imagens, ao invés de encontrar uma satisfação correspondente à promessa nelas envolvida, acaba sendo satisfeito com o simples elogio da rotina. Não conseguindo, como pretendia, escapar a esta última, o desejo divorcia-se de sua realização que, sufocada e transformada em negação, converte o próprio desejo em privação: a indústria cultural não sublima o instinto sexual, como nas verdadeiras obras de arte, mas o reprime e sufoca. Ao expor sempre como novo o objeto de desejo (o seio sob o suéter ou o dorso nu do herói desportivo), a indústria cultural não faz mais que excitar o prazer preliminar não sublimado que, pelo hábito da privação, converte-se em conduta masoquista. Assim, prometer e não cumprir, ou seja, oferecer e privar, são um único e mesmo ato dessa indústria. A situação erótica une à alusão e à excitação, a advertência precisa de que não se deve, jamais, chegar a esse ponto. Tal advertência evidencia como a indústria cultural administra o mundo social.
Dos limites, porque a crítica de Adorno resulta em um hábil trabalho de desmontagem, mostrando os fatores limitantes que perpassam os projetos iluminista, tecnológico e científico e o atual modelo de sociedade do mundo da mercadoria e da indústria cultural. Em toda essa trama há paradoxos. Na tentativa de conhecer a natureza, o esclarecimento atribui à ciência o status de guardiã da verdade, relegando ao indivíduo a condição de sujeito adaptado e submisso, o esclarecimento perde a sua dimensão reflexiva, porque faz com que o cidadão aja sob o compasso ditado pelo ritmo da maquinaria do progresso.
A irrefreável maldição do progresso, uma regressão a um estado de dominação, à racionalidade técnica (racionalidade da dominação) instrumentalizada: quando o progresso passa a ter um fim em si mesmo, pode ter efeitos funestos. O desenvolvimento tecnológico desvinculado de uma destinação humana concreta pode ser usado para uma dominação cega, como a história recente comprova. As guerras nas quais se usa o moderno arsenal tecnológico, os projetos friamente elaborados para o extermínio em massa, entre outros acontecimentos meticulosamente controlados pela técnica, constituem-se exemplos do lastro desastroso do poder tecnológico. E, por fim, o apaziguamento feito através do controle da consciência individual, por meio de uma política conciliatória e pacificadora de conflitos, sob o pretexto de um mundo sem fissuras, de felicidade e bem-estar para todos os “engajados”, acontece à custa de um pensamento autônomo e não identificado.
A racionalidade técnica hoje é a da própria dominação, como o caráter repressivo da sociedade que se autoaliena, que cria sujeitos estandardizados e nivela as necessidades de todos para que consumam o mesmo produto produzido em série. O mesmo produto para a mesma necessidade, e (a) necessidade que talvez pudesse fugir ao controle central, já está reprimida pelo controle da consciência individual. A indústria cultural explicada pelo aparato tecnológico e pelo progresso, sob a pretensão de facilitar a vida das pessoas, na verdade funciona como impeditivo do pensamento autônomo.
Em vez de apreender e adotar as crenças mitológicas, a civilização moderna se percebe cada vez mais presa às teias do progresso e ao domínio da técnica e da ciência que afloram como um novo mito mais poderoso, embora sutil. Se o mito já era uma forma de esclarecimento, este acaba se revertendo em mitologia. A busca do conhecimento científico e tecnológico para desvendar os mistérios da natureza e dominá-la, processo pelo qual os homens acreditaram poder se libertar das potências míticas pela racionalização, resultou paradoxalmente no seu oposto: o homem (e com ele a natureza) tornou-se refém do aparato tecnológico/científico, fim para o qual se convergem todas as ações humanas. A razão iluminista que, a princípio, teria como destinação o resgate do seu conceito crítico e emancipador, proporcionando uma condição verdadeiramente humana às pessoas, possibilita, ao contrário, um retorno à barbárie e à regressão a um tipo de violência, primitiva em suas formas de manifestação. Em outras palavras, o homem esclarecido é ao mesmo tempo o homem nazifascista, o especialista, tecnologicamente perfeito que projeta máquina de destruição em massa, que pensa a logística para melhor fluidez dos contingentes humanos aos campos de extermínio. O sujeito esclarecido que ostenta uma impecável eficiência do ponto de vista do domínio da técnica, é simultaneamente, incapaz de pensar nas consequências e no alcance maléfico de seus inventos e ações, porque está “enfeitiçado” por esse novo mito – a ciência.



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