Ilustração: Gene do medo de Rubens Shirassu Júnior
“Estado é o nome mais frio de todos os monstros gelados.”
Nietzsche
A “(re)volição” do
cotidiano, uma vontade de mudança que diverge da “revolução”, e quer
transformar o mundo na mesma medida em que deseja amar e transar. O elemento do
amor sexual parece ser a via de transformação social, e diferente da revolução,
restrita aos aspectos da economia-política. A atuação provocativa e licenciosa
tira o tal “espectador” de seu papel passivo e o incita (e excita) a uma ação
combativa e corporal. Esta forma de atuação política que o poeta Roberto Piva
vivenciou, em contraposição ao “torcicolo culposo” de uma esquerda choraminga e
masoquista. A imagem se reflete ácida e muito bem humorada. Torcicolo como
símbolo de um corpo travado, mas também com dificuldade de olhar para os lados
e ampliar os horizontes. Um corpo travado pela moral: a culpa e a piedade de
quem se compraz com a pobreza alheia. Piva talvez esteja salientando a atração
cristã pelos espoliados como impulso de negação da vida – como se vê nas
críticas de Nietzsche ao comunismo
como rebento do cristianismo. Uma vez mais o poeta beatnik paulista faz uma crítica política usando termos ligados à
sexualidade: a “emoção masoquista”. Para um leitor de autores da psicanálise, o
masoquismo pode ser entendido como aquele laço entre a energia sexual e a
agressividade voltado passivamente para dentro. Reflete um sujeito novamente
ligado à passividade que se autoflagela moralmente – e tem com isso prazer.
Acredito no conceito
realismo-socialista de rechaçar a telenovela como proliferadora de valores
pequeno-burgueses e manipuladora dos comportamentos. Gradualmente, brotam
tensões com a esquerda e a postura imperialista dos conservadores, razão pela
qual lança mão de um toque nietzschiano, evidente na expressão “alma
bailarina”. A presença de Nietzsche é
fundamental por dois motivos. Primeiro, por ser um filósofo muito crítico ao
comunismo e, por isso, execrado pela esquerda. Segundo, porque a crítica ao
moralismo da esquerda e sua negação do corpo acompanha as ideias deste Anticristo.
A imagem da dança é
abundante e bastante aberta nos meus ensaios e artigos. Meu Zaratustra anda como bailarino e a dança
aparece ora como o exercício do livre pensar da filosofia ou como qualificativo
de sua própria filosofia, ora como o próprio devir da vida num fluxo vário sem
qualquer finalidade. Dionísio figura também como um deus que sabe dançar,
especialmente quando encarnado corporalmente nas almas bailarinas das bacantes
em êxtase. Pode-se dizer que a “alma bailarina” se refere à possibilidade de
fluir na vida e nos pensamentos com força e flexibilidade; com a leveza de
variar os ritmos e se enlevar com impulsos diversos. O movimento bailarino é o
extremo oposto daquela fixação moral do mundo dotado de uma finalidade como,
por exemplo, o determinismo dialético de uma revolução como superação dos antagonismos.
A alma bailarina na afirmativa do avesso do torcicolo culposo, pois é a ação de
um corpo em gozo em uma orgia para além do bem e do mal. Essa possibilidade de
dançar através de várias perspectivas e paixões, típicas do politeísmo, que
contraponho à ditadura da conduta única do Moneyteísmo.
No trecho inicial do
derradeiro livro de Assim Falou Zaratustra, intitulado exatamente
“Sacrifício do Mel”, o sacrifício retira dos humanos a negra angústia e
alçá-los às felicidades da afirmação da potência da vida no “reino milenar de Zaratustra”. Roberto Piva, filósofo e poeta beatnik brasileiro, associa esse
vitalismo ao apetite sexual dos adolescentes e sua força para amar sem qualquer
piedade. A aposta em uma transformação social por meio do amor sexual torna
fundamental a presença do profeta francês Charles
Fourier. O erotismo da imagem também é importante, pois Fourier e sua obra seriam disseminados
na forma de beijo – uma linguagem corporal e sexual. Qual a importância das ideias
de Fourier?
A mudança social
proposta pelo pensador francês coloca em primeiro plano a questão da Paixão. Os
sistemas político, econômico e moral das sociedades civilizadas estariam
pautados no controle repressivo das paixões, consideradas como um mal a ser
extirpado. A partir desse denominador comum, Fourier faz a crítica da captura dos prazeres sexuais na monotonia matrimonial
da família burguesa ou na hierarquização da produção econômica. Assim, sua
utopia revolucionária coloca os prazeres sensuais como fundamentais para o
desenvolvimento da sociedade e do indivíduo, estando indissociáveis da
autogestão econômica. Ou seja, ao lado da organização da produção pela
via associativa e igualitária, sua utopia sugere a criação de corporações
amorosas que salientem inclusive a esfera pública e festiva do amor nas orgias.
Essa experiência do potencial transformador das paixões sexuais é similar à
“re-volição” proposta por Roberto Piva.
A morte em vida se dá
pela captura do corpo e seu potencial erótico. A moralidade de costumes é
colocada como uma primeira forma de captura e se desenvolve na crítica de Nietzsche ao cristianismo. Em linhas
gerais, o filósofo alemão associa o cristianismo à negação da vida terrena em
prol de ideais ou ídolos prostrados num porvir abstrato. É a negação do corpo e
de todo o devir por uma vontade de nada, ou seja, uma quietude inerte sem vida.
Rejeita-se o devir pelo dever, a partir da submissão a um tal “deus” que
representa toda a ordenação moral do mundo. Friedrich
Nietzsche observa quanto, mesmo após a “morte de Deus”, suas sombras ainda
se fazem sentir em todo ideal ascético da religião, da ciência, da arte e
outras expressões da vida.
Essa ordem moral do
mundo se associa ao “superego” psicanalítico, que pode ser entendido,
resumidamente, como a instância psíquica que opera as convenções sociais e suas
repressões desde o interior do sujeito. A partir dessa inserção na cultura o
sujeito passa a ser atravessado pelas convenções na satisfação imediata de seus
impulsos. Os impulsos sexuais mais suscetíveis à repressão e impedidos de uma
descarga imediata vão encontrando espécies de objetos substitutivos,
especialmente em atividades produtivas, em um processo que se denomina
“sublimação”. É um movimento em que o impulso corporal do sexo, por exemplo, se
torna mais abstrato, mais “sublime”, mais “dessexualizado”. Ocorre a negação da
vida corporal similar àquela de Nietzsche.
Considero que nesta cultura do instinto de morte (termo “mortikultura” de Piva),
as possibilidades de descarga das pulsões sexuais se dão em atividades de
entretenimento que alimentam ainda mais esse ciclo de moralidade: a “sublimação
morta”. A potência do corpo e o apetite sexual vão se atrofiando e tornam a
vida sem tesão. A crítica de Nietzsche sobre o cristianismo como desprezador do
corpo e da vida, criando “homens mais consumidos de ressentimento, autoflageladores
e submissos. É a mesma base dos textos que acabamos de ver, coincidindo até
algumas expressões.
Herbert Marcuse, em seu clássico Eros e a Civilização,
procura exatamente desenvolver a teoria freudiana das pulsões em um plano
político-revolucionário de superação da sociedade capitalista repressiva. Este
ousado frankfurtiano partia de uma crítica ao trabalho alienado como forma de
captura da energia sexual do indivíduo e atrofia de seu potencial erótico –
como aponta Roberto Piva em sua nota ao final do texto. No entanto, diferente
de Sigmund Freud, Marcuse acreditava
no trabalho alienado como condicionado historicamente. Assim, o grau de
desenvolvimento das forças produtivas com sua automação liberaria o trabalhador
a investir seus instintos vitais em atividades distintas da alienação do
trabalho capitalista. Daí a aposta do filósofo em atividades nas quais o
princípio da produtividade é substituído pelo princípio do prazer. Marcuse
enfatiza sobretudo a “fantasia” e a “imaginação”, a exemplo da poetização da
vida em Novalis ou da proposta de praticar a poesia no surrealismo. São
atividades ligadas ao prazer e ao jogo, devir sensual de Eros que cria um outro
modo de viver. São atividades da esfera estética, na qual o prazer, a
sensualidade, a beleza e a verdade caminham juntos. Ao contrário do mito de
Prometeu e a ênfase na produtividade, Marcuse
busca respaldo mítico no mito de Orfeu e de Narciso para fundamentar esse novo
modo de vida. Aí vem a parte que mais nos interessa. Pelo que declara Marcuse: “A tradição clássica associa
Orfeu à introdução da homossexualidade. Tal como Narciso, ele rejeita o Eros
normal, não por um ideal ascético, mas por um Eros mais pleno. Ou seja, na
homossexualidade simbolizada por Orfeu, Marcuse
vê uma ruptura à domesticação do sexo na instituição da família e sua restrição
à procriação. Este sexo produtivo é símbolo da captura da atividade sexual pelo
princípio de utilidade social, deixando o prazer restrito ao lazer (como
espécie de parceiro da canalização das energias sexuais para o trabalho). Marcuse considera a exploração dos
prazeres do corpo para além da procriação como uma ressexualização do corpo ou
“uma ressurgência da sexualidade polimórfica pré-genital e num declínio da
supremacia genital. E o filósofo prossegue destacando o potencial transformador
desse corpo, que levaria a uma desintegração das instituições em que foram
organizadas as relações privadas interpessoais, particularmente a família
monogâmica e patriarcal.
Em outras palavras, a
experiência de prazer do corpo, para além da ditadura genital e matrimonial, é
parte de uma liberação dos instintos vitais que Marcuse considera, em última instância, uma transformação social
mais profunda. Não precisa dizer que, na década de 1950, essa transformação era
a própria superação do trabalho alienado a partir de uma perspectiva sexual e
erótica. É essa uma possibilidade de articulação das ideias de Eros e a
Civilização como o lema da “ressexualização” do corpo não é sinônimo de
homossexualismo. Mas, os coitos anal e vaginal, mesmo quando em relações
denominadas homossexuais, são uma das formas de experimentação dos prazeres do
corpo para além de uma finalidade útil. Dentro deste raciocínio, se pode pensar
no quanto a vida sexual contribui para a transformação social ou a tal
“derrubada” do capital.
Nesse tom político,
artístico e mítico que como artistas e pensadores devemos apostar em todas as
formas de amor, com especial acento aos contornos místicos do “amor-êxtase”. Por
esse amor experimentado em todas as suas possibilidades que se vale lutar e
morrer. É por essa vivência amorosa que se chega à “libertação”.
O lógico-matemático e
filósofo da ciência Paul Feyerabend,
em seu excelente livro Science in a Free
Society, nos mostra que até pensadores audazes e revolucionários se
submeteram ao domínio da ciência. Kropotkin
quer acabar, diz Feyerabend, com todas
as instituições existentes, mas não toca na ciência. Ibsen ataca impiedosamente
a sociedade burguesa, mas deixa a ciência continuar sendo a medida da verdade. Marx e Engels estavam convencidos de que a ciência ajudaria aos
trabalhadores em sua busca de emancipação social. Tal atitude tinha sentido nos
séculos XVII, XVIII e mesmo no século XIX, quando o Estado ainda não se tinha
declarado a seu favor e ciência
restringia a influência de outras ideologias e deixava assim espaço individual
para o pensamento. Atualmente, nada há na ciência, nem em qualquer outra
ideologia, que tenha alguma coisa de libertador. As ideologias podem
deteriorar-se e converter-se em religiões dogmáticas (exemplo: o marxismo).
A sociedade atual
segrega as classes populares, isola os diferentes. Mas não se trata de qualquer
tipo de educação ou de escola. Precisamos enfrentar este fértil e difícil
problema; o que é formar culturalmente no século XXI? O que é realmente
importante aprender? Temos que sair do lugar-comum de abordar a educação
brasileira com um olhar livre, contemporâneo, crítico e inovador. O plano de educação
e a grade curricular são um grande entrave no processo de democratização da
literatura realista e retratista do contexto econômico, social e político da
comunidade rotulada de “invisível” do Brasil! Esta literatura que conscientiza
os estudantes do ensino médio e a população em geral, sobre a uma sociedade
desigual, que naturalizou o fracasso escolar, a falta de amanhã ou perspectiva
de futuro e de vida equilibrada. Assim, urge criar uma escola amoldada ao
perfil e às mudanças de comportamento, de costumes e de valores deste século.
Uma instituição democrática e fecunda para os jovens e à população em geral.
Concordo totalmente
com Paul Feyerabend, quando afirma que
numa sociedade realmente livre, deve haver uma separação total entre ciência e
Estado. Numa sociedade livre, as crianças poderiam na escola escolher entre
estudar matemática, física, história ou astrologia, xamanismo, acupuntura, por
exemplo. O que conta numa democracia é a experiência dos cidadãos, sua
subjetividade, e não o que pequenos bandos de intelectuais autistas declaram
que é real. O que determinou que a medicina indígena não servia, não foi
nenhuma prova científica, mas o poder político, religioso, econômico dos
colonizadores.
Não é sem fundamento
que físicos, matemáticos e centenas de adeptos da ciência oficial, se voltam
agora para outras posturas, outras maneiras de ver o mundo. Os nomes de Fritjof Capra, Paul Feyerabend, Lutzenberger,
Andrija Puharich, Hans Holzer,
entre muitos outros, ilustram bem esta virada. Para ver o presente com clareza
afirma Ivan Illich, imaginemos as
crianças que logo brincarão entre as ruínas das escolas secundárias, dos
Hiltons e dos hospitais.
Alain Daniélou, no seu brilhante livro Shiva e Dioniso - A Religião
da Natureza e do Eros -, no último capítulo intitulado “O Retorno de
Dioniso” mostra muito bem que um instinto de sobrevivência neste nosso mundo
ameaçado se manifesta em diversas formas: a ecologia, a reabilitação da
sexualidade, certas formas de ioga, a procura dos equilíbrios espiritual,
emocional e o material através da medicina tradicional chinesa. Estas atitudes
são indícios da necessidade profunda de reencontrar uma aproximação com o
mundo, com o homem, com a vida, fundada em valores reais conforme a natureza
verdadeira do homem e seu papel na criação. Estas formas de experiência só
encontrarão a sua lógica e expansão, num retorno ao Dionisismo mesclado à vida simples
e alternativa.
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