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Sono secular



Este trabalho coloca-se definitivamente na linha das obras fundamentais para a compreensão dos fenômenos da formação brasileira, ao lado de livros como os de Gilberto Freyre, Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Hollanda, Fernando de Azevedo e Caio Prado Júnior.
A tese que o sociólogo gaúcho propõe e cuja forma original amplia na presente edição, é das mais ricas e fecundas, especialmente pela explicação que sugere para o caso político e social brasileiro.
Examinando interpretativamente certas fases decisivas de nossa História relacionando-as às suas raízes portuguesas, Raymundo Faoro demonstra que as nossas crises, os conflitos e perturbações em que é farta a nossa crônica político-social, são em grande parte resíduos de uma organização defeituosa e artificial, de que ainda não nos libertamos de todo.
O ponto central da tese é o fenômeno que ele conceitua como estamento burocrático, realidade que não se confunde nem com a elite dirigente (“em todas as sociedades organizadas e em todas as épocas”, sustenta ele, “houve sempre o domínio das minorias”) nem com a burocracia. Para o autor, a burocracia é apenas o aparato da máquina governamental, ao passo que o estamento burocrático é o árbitro do país, de suas classes, regulando materialmente a economia, funcionando como o proprietário da soberania. As demais estratificações, classes ou estamentos, são por ele condicionados, carecendo de valor simbólico próprio.
As últimas eleições não foram decisivas para o futuro desses novos “donos do poder” e sua percepção atrasada e ultrapassada de Estado. Mas, seja qual for seu resultado, esta República se esgotou. É ingente um novo pacto que inaugure a próxima, em que o poder seja realmente partilhado com o soberano: o restante do povo brasileiro que a tudo assiste perplexo e desorientado. Uma imensa tarefa de reconstrução do Estado brasileiro é o que se espera, mas ainda não se percebe no discurso dos candidatos.
O principal mérito de Os donos do poder: acordar a história brasileira do seu sono secular, nostálgico e, muitas vezes, sem o saber, elogioso, da tradição portuguesa. Teríamos cumprido essa missão lançada por Faoro? Pela importância e alcance de suas concepções, este livro torna-se leitura obrigatória para todos aqueles que se dedicam ao estudo sério de nossa História ou da Política nacional.

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