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Condição materna e opressão


Pelo poder de concisão e uso de uma linguagem coloquial, clara e destacando pela sinceridade dos poemas, Téte critica mirando especialmente nos valores estabelecidos há séculos pela sociedade, principalmente naqueles que limitam a liberdade das mulheres. Sua produção, entretanto, vai além de uma análise feminista, passeando por assuntos diversos, com leveza, lirismo, feminilidade, maternidade e, por outro lado, de forma densa. Há em sua obra Bicho mãe, a questão do ser mulher, deixando clara a sua marca, a resistência ao enraizado patriarcado machista e opressivo no Brasil. Através da leitura do livro, em especial o poema contundente Ao obstetra de plantão, demonstra-se que os poemas de Téte se enquadram com precisão no conceito de poesia de testemunho, tendo em mente que a autora em seu livro retrata a condição feminina, as misérias e as dores do cotidiano.

O livro mostra a batalha árdua da mulher para ultrapassar os limites que lhe são impostos, tanto no espaço privado da vida doméstica, quanto na arena pública, onde se desenvolve a luta pela sobrevivência. De forma intuitiva expõe o corpo feminino, a casa, o trabalho doméstico, os conhecimentos da mãe e da avó espelhando as preocupações e realidades da mulher, de hoje, na sua vida cotidiana. A poeta repensa os qualificativos tão comumente invocados para rotular as mulheres: “mãe vira bicho”, “tonta” entre outras imagens dos estereótipos femininos. Os poemas de Téte não se conformam em ser lidos apenas sob essa perspectiva do testemunho. Mas lê-la assim, contudo, não é pouco. Mas um porto de partida para novas navegações que, doravante, nos levam como leitores.

Ocorre em dez poemas um conhecido minidrama materno — considerando a voz autoral feminina — de acompanhar o lento crescimento do filho em direção à vida adulta, à desejada autonomia. Nesse caminho, a mãe há de sentir carência, solidão e decepções, e há de querer, qual um insistente Sísifo, refaça o trajeto, supere a dor, siga adiante. A figura de linguagem cinematográfica de “Coragem e medo” confere ao poema outra triste dimensão para análise. Se o poema for lido a partir de uma perspectiva histórico-política, tudo nele se reconfigura. Como se sabe, um dos sentidos de “filho/ corre da bomba/ não olha para trás/ para as/ cores do céu tão vivas/ que deixam as coisas tão/ mortas de luz e guerra”, em contextos e períodos autoritários, é “ser pego”, “ser descoberto”, mesmo “morrer”, como em “o aparelho caiu”, ou o “camarada caiu”. Em 1980, estávamos ainda em regime militar (que se prolongou até 1985) e as práticas belicosas — que se iniciaram com o golpe de 1964 e se intensificaram nos anos 1970 a partir do AI-5 de 1968 — permaneciam, com toda a carga de barbárie.

Assim, do drama existencial de uma mãe em particular (que repete a angústia universal de pais e mães), que observa os incipientes passos de um filho ou mesmo alguma agrura ou aflita precaução que redunda em queda/morte, o poema se transforma numa peça de denúncia e de resistência, ainda que em moldes alegóricos. Decifrada — nessa direção — a palavra que encerra o poema, aos versos se associa o sentido de uma leitura crítica do Brasil de então, que torturava e matava seus “filhos”, aqueles considerados subversivos, aqueles que “caíam” nas garras do Estado censor, repressor e assassino.

Teté fez seu poema “Coragem e medo” (filho/ corre da bomba/ não olha para/ trás) expressando sua preocupação quanto à sobrevivência na guerra, uma metáfora da vida atual e da política dos tempos da censura. O recurso linguístico, decerto tributário da herança ditatorial do país, hipnotiza o olhar, qual um punctum de Roland Barthes (pode ser lido como um elemento ativo, da ordem do aparecimento, jamais um sentimento buscado, possuindo o caráter de incodificável. Como uma flecha, o punctum é aquilo que penetra, que transpassa, que fere. Remete também à ideia de pontuação, como se algumas fotos fossem pontuadas por pontos sensíveis.) solicitando olhos livres para ver. O desejo da mãe dá lugar (sem deixar de ser o que de cara parecia) a uma imagem de algum militante que “corre” das garras do Estado militarizado, violento. Constrangidos, somos levados a pensar nesses filhos, nesses netos que, um dia, correrão — ou explodirão — para nunca mais.


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