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Experiências e ecos órficos (4)

 

Pintura de Arina de Barros
(Parte 4)

Dora Ferreira da Silva, ao explorar a característica do mito, torna viva a alteridade, atentando-se para atemporalidade da tradição, a Grécia, que é presente e reflete no contemporâneo, envolvendo a metafísica no que tange projetar as deusas ao vir-a-ser humano.

É prudente assimilar as mensagens de Dora Ferreira da Silva através da percepção sensorial particular do leitor que busca um referencial que está além de nós. Para exemplificar, Roland Barthes (2001, p.131) afirma que “O mito é uma fala”, “é um sistema de comunicação, é uma mensagem”. Já Mircea Eliade (2006, p.11-13) considera o mito como um sistema dinâmico proveniente dos arquétipos da humanidade.

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio [...]. Fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. [...] Mito é a palavra, a imagem, o gesto, que circunscreve o acontecimento no coração do homem. (2006, p.11-13)

Dora Ferreira da Silva (1999) reafirma o “parentesco” anunciado por Barthes (2001) através de grande parte de sua obra poética, pois seus olhos atentos e sua alma sensível captam a poesia por toda parte. A poetisa assimila a poesia cósmica com qualquer manifestação de cores, formas, ritmos, em qualquer elemento humano e espiritual, material ou imaterial e transforma em versos. Ela retoma em seus poemas a origem do ser através dos mitos que é identificado no classicismo para mostrar que a humanidade descende dos deuses míticos, que todos são parentes, por serem filhos do mesmo universo.

A poeta (1999) constrói, uma vez que a mesma envolve a mitologia para tratar dos mistérios, o inefável. Ao adentrar neste mundo imaginário em que o “eu” cede lugar às nuances do vir a ser, no qual o corpo recebe o alimento para a própria existência e assim produzir uma voz para o leitor a fim de que ele aspire profundamente e com perspicácia o poema, e nessa dimensão seja alimentado. Observemos no poema “Ártemis”, do livro “Talhamar”, como a poeta Dora enuncia a mitologia, (SILVA, 1999, p.244):

ÁRTEMIS

Entre espadas cruzadas de verdes ramas

a nenhum olhar doada, senão às claras pupilas que a circundam, o fogo branco do corpo queima feixes de água

e à seta mais ligeira precede, desferida

num voo mais secreto.

Cantam ursinhas no lago

ao som da harpa que o vento cego estende à ninfa. Em vagas se distende a música.

Rolam pérolas nas frontes, em fios de úmidos

vapores. E não seria o som – nem mesmo o sopro mais ligeiro – companheiro da nudez velada,

se pousasse os ventos aedo as fortes mãos na harpa atirada ao colo de Cirene, a clara.

Ao pensar no plano transcendental, a voz evocada provoca e instaura uma inquietação acerca dos elementos constituintes da natureza, por meio do poema pode ser da Ártemis ou do eu que enuncia, pois ao evidenciar o objeto, há uma subjetividade causada no próprio eu lírico, por se tratar de uma criação simbólica/ mitológica, pode representar a plenitude da existência pelo fato de que a origem dá sentido à existência.

Nota-se que neste poema o título já pressupõe tratar da mitologia. A deusa Ártemis representa uma figura bela, genuína, íntegra e forte, tais traços são perceptíveis não somente através do poema, mas pela própria história de existência. Foi acolhida por elementos da própria natureza, isso a faz como deusa guerreira que a priori vive em sua essência um arquétipo da natureza, pois o próprio ambiente desempenha papel preponderante para que a divindade defenda onde vive. Paulo Peixoto descreve a vinda ao mundo de Ártemis, “E foi ali, em Delos, sob uma palmeira, que nasceram Ártemis e Apolo” (2003, p.89). É oportuno ressaltar que a deusa destruía qualquer ser humano que sequer a contemplasse, é como se fosse algo inóspito trazendo desconforto e estranhamento à deusa. E assim foi construída a cristalização de Ártemis, como selvagem guerreira-protetora, afirmo:

Quão diferente é a figura de Ártemis, jovem vigorosa, íntegra e bela! Vestida de caçadora está sempre pronta para a caçada, com seus arcos e suas flechas; [...] traz a Luz do nascimento, da vida e da fertilidade. (...) A imagem dominante de Ártemis é a da virgem caçadora. Ela se tornou por assim dizer, a divindade da natureza - não em seu aspecto procriativo, mas, virginal, tranquilo e primordial.

Ao observar a organização estrutural do corpo do poema, percebe-se que as estrofes estão distribuídas em versos livres, uma importante característica da literatura contemporânea, a forma como as palavras estão dispostas sugere um movimento de leveza (dança), também é constatado um lirismo e musicalidade presente no poema, como nos versos “Cantam ursinhas no lago /ao som da harpa que o vento cego estende/ à ninfa/ Em vagas se distende a música.”

Ao retomar a mitologia grega, o poema revela a graça da divindade que é habitada por elementos de ambientes da natureza, retomemos o verso “Entre espadas cruzadas de verdes ramas” onde se encontrará a deusa. Ártemis é revelada no poema como intocada, ao aprofundar o termo “ninfa”, que deriva do grego e significa “noiva”. Ao fazer uma correlação com o poema, pode-se interpretar que a deusa é noiva da própria natureza, uma selvagem imortal, protetora que vive solitária, os fragmentos comprovam a solidão da ninfa “E não seria o som – nem mesmo o sopro mais ligeiro – companheiro da nudez velada [...]”.


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