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Experiências e ecos órficos (5)

 

(Quinta e última parte)

Ao analisar a poesia de Dora Ferreira da Silva chego à conclusão de que há a enunciação da presença de deusas “numa época da morte de Deus, tempo de carência e de ausência do sagrado”. De acordo com minha visão, a poeta Dora traz a vitalidade das deusas nos poemas e assim celebra a renovada atenção aos mitos gregos lembrando que os deuses vivem em nós.

A forma como Dora expressa em sua poesia permite que o próprio ser distancie de si e sinta os turbilhões de sentimentos nesse mundo transponível, conhecendo as deusas, o maravilhoso, o incomum. É manifestada a poeta, a artista que decifra todo o acontecer, por esta perspectiva realiza-se o lirismo e evidencia o sujeito moderno.

Este ensaio teve como intuito discutir a subjetividade através do sujeito lírico, apreendidos como estado íntimo conferido ao “eu” poético, esvaziamento do ser para experimentar as coisas do universo desconhecido e assim conhecer o inefável e estar fora de si. Entender que a subjetividade na poesia lírica contemporânea não está somente intimamente ligada à identidade do sujeito, aspecto tradicional, mas ela é ressignificada num visão ampla, pois a subjetividade moderna pode estar relacionada à fragmentação da consciência do sujeito, reconstituindo o sujeito lírico através das coisas ou objetos.

Outro fator preponderante: entender que na obra poética de Dora Ferreira da Silva (1999) o clássico e o contemporâneo são presentes, uma vez que a poeta busca a temática mitológica (tradicional) para resgatar por meio do vigor das deusas, a essência humana, também configura a presença do feminino para mostrar os valores que são sagrados e ocultados no universo feminino mediante a supressão e austeridade imposta pelo homem.

A expressividade da poesia é demonstrada como uma peculiaridade dos temas de Dora Ferreira da Silva para que o leitor reflita sobre as identidades e os valores que vão se fragmentando e perdem-se em meio a uma sociedade em massa que prima por questões de interesse financeiro, consumo e perde hábitos e valores culturais sagrados que enriquecem espiritualmente e humanamente.

Assim, a poetisa Dora, com sua imaginação fértil, mostra que através de sua vocação poética, considera que o papel do poeta é mostrar, questionar e transformar o que estava na penumbra, perseverando, por mais que a humanidade esteja a caminho da dessacralização, o ressurgimento para irradiar a alma subterrânea, numa corrente espiritual que o inadequado, o transumano ganha forma e força, abrindo para novos horizontes que somente a poesia é capaz de suscitar.

Referências:

BARTHES, R. Mitologias. Trad. Rita Buongermino e Pedro de Souza. 11ªed. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BOSI, A. O ser e tempo da poesia: Poesia-resistência. 8ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

CAMARGO, G. O. BUARQUE, J. Inscrições da subjetividade na poesia contemporânea brasileira e portuguesa in: Fronteiras de paragens líricas. 1ª ed. Goiânia: Cânone Editorial, 2016.

CANNABRAVA, E. Decisão poética em Dora Ferreira da Silva. In: Poesia Reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.

CESAR, C. M. O poetar pensante de Dora Ferreira da Silva. In: Poesia Reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.

COLLOT, M. O sujeito fora de si. Revista Signótica Trad. Zênia de Faria, Cesaro, Patrícia Souza Silva. Goiânia, Vol.25, n 1, p.221-241, 2013.

COMBE, D. A referência desdobrada. O sujeito lírico entre a ficção e a autobiografia. Trad. Iside Mesquita e Vagner Camilo. Revista USP, São Paulo,

Revista Ícone Revista de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Linguística e Literatura Volume 19, n.1 – Agosto de 2019 – ISSN 1982-7717


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