Pular para o conteúdo principal

Para uma compreensão dialética da realidade







Escritor prudentino segue uma reflexão de Nietszche:
"Distanciamo-nos cada vez mais de nossa origem."






A consciência de que nunca acabamos
de decifrar o mistério estético não se opõe
ao exame dos fatos que o tornam possível.
Jorge Luis Borges



Transcendendo o mero deleite pelo ensaio e pela digressão, e o prazer pela observação crítica do universo individual e coletivo, Religar às Origens, de Rubens Shirassu Júnior, é um livro de mergulho na essência humana, numa tentativa – levada com seriedade e exaustão – de compreensão da nossa natureza e dos fenômenos sociais, econômicos, políticos e culturais.
Da crônica que testemunha e registra os fragmentos do quotidiano, passando pela análise conscienciosa de livros e autores, culminando na reflexão filosófica, essa coletânea mapeia o pensamento e as impressões de um escritor que, desde sua juventude, vem numa militância intelectual obstinada, perseguindo a verdade e a liberdade de expressão, antenando-se com as questões e demandas da atualidade, aqui cobrindo trinta anos (1981-2011) de seu permanente exercício analítico de nossa realidade.
Na linha de um Montaigne, que inaugurou o gênero nos primórdios do século XVI, Shirassu oferece-nos uma mirada contemporânea sobre temas que atravessam os tempos. Propõe novos debates e com sua agudíssima e cirúrgica prosa, coloca-nos frente a frente com os dilemas, conflitos e pendências que caracterizam a própria existência e que exigem do ser uma tomada de posição, esmiúça o que está encoberto ou dissimulado na gênese dos acontecimentos.
Embora confeccionado numa linguagem elaborada e culta, o estilo do autor não desborda para o exibicionismo acadêmico nem se rende ao hermetismo, algo muito encontradiço na arrogância de uma pseudointelectualidade tão em voga. Estamos, sim, diante de uma escritura refinada e elegante, sem a ganância da ostentação palavrosa e vazia. Sua erudição não compromete a fluência, pois não despreza o senso de objetividade e clareza imprescindível à plena comunicação com o leitor, razão pela qual a sua leitura alcança tanto os espíritos mais exigentes quanto o público comum, sem qualquer dificuldade de penetrar em seus meandros conceituais.
Além de provocativos, os ensaios, artigos e resenhas de Religar às Origens estimulam ao questionamento e resultam numa prazerosa leitura, por conquistar-nos pela atualização de temas que dizem respeito ao nosso dia-a-dia. Nesse caldeirão de assuntos, palpitam as relações familiares, a moral social e religiosa, a velocidade no câmbio de valores e sentimentos nesses tempos de fetiches, coisificação e rotulagens; as mazelas da política, as ditaduras estéticas e televisivas, os embates entre a razão e a emoção, a luta entre a consciência e os sentimentos, as refregas entre a carne e o espírito, os desafios da linguagem e da educação, a relativização dos mitos e dos heróis, os (des)caminhos da arte, da cultura e da literatura, os universos psicológicos, paralelos e metafísicos, o eterno conflito entre o ser e o ter, etc. Esse verdadeiro e instigante caleidoscópio de abordagens traduz as preocupações do autor com os sintomas de um tempo e de um mundo cujas experiências íntimas e exteriores nos apresentam um legado de misérias e frustrações, com seu manancial de inconformismos, que nos catapultam e nos sitiam a um sentimento cada vez mais melancólico, inquietador e dissidente da ordem estabelecida, apartando-nos de qualquer motivação colonizadora que os latifúndios do imperialismo cultural e tecnológico tentam, com toda vassalagem e terrorismo, impor as nossas vidas.
Com uma inegável exegese do mundo e do homem, as impressões de Rubens Shirassu Júnior escrutinam o passado e o presente da civilização com grande competência, na linha do que já antecipava Adam Schaff: “Nos nossos dias, já ninguém duvida de que a história do mundo deve ser reescrita de tempos a tempos. Esta necessidade não decorre, contudo, da descoberta de numerosos fatos até então desconhecidos, mas do nascimento de opiniões novas, do fato de que o companheiro do tempo que corre para a foz chega a pontos de vista de onde pode deitar um olhar novo sobre o passado...” A partir desse novo percurso, vamos encontrar os totens, ícones, parâmetros, estereótipos, arquétipos e referenciais que marcaram a história universal e, particularmente, a do Brasil. Das ciências à literatura, da política ao teatro, do jornalismo aos cultos africanos, do cinema à psicanálise, há aqui um encontro com visões distintas, reconduzidas pelo desejo de busca e apreensão que a leitura da vida possibilita. E com seu espírito de escafandrista e alma de garimpeiro, Rubens vai fundo nas coisas e passa em revista pontos cruciais em Roberto Piva, Marx, Kafka, Freud, Jung, Caio Fernando Abreu, Baudelaire, Gilberto Freyre, Pierre Verger, Flaubert, Joyce, Nabokov, Proust, Hélio Pelegrino, George Orwell, Oscar Wilde, Mishima, dentre outros. A vida, a bibliografia e a visão desses escritores, artistas, filósofos, cientistas e outros homens de ação e pensamento servem de ponte dialética para a construção e a dinâmica literária de seu diálogo, com que o autor explora e deseja entender o universo e suas ambiguidades. É assim que estabelece seu trânsito investigativo, sem teorizar ou priorizar qualquer linha de raciocínio, mas contemplando e dissecando vertentes, que nos permitam vislumbrar outras conclusões. E com muita lucidez, traça um amplo e multifacetado painel da contemporaneidade contaminada pelo poder, tão degradada, aviltada e confusa, perdida e dividida entre a retórica de uma pretensa modernidade e os modos de agir e sentir do medievalismo e da barbárie.
Ao descortinar os escombros desse mondo cane, alerta-nos para o terrível enfrentamento da herança dessa época em que a memória e a identidade vivem suas crises e que, por culpa e obra de suas contingências, como diz Nietszche, “distanciamo-nos cada vez mais de nossa origem”.
Em contraste com o atual momento, em que experimentamos um crucial vazio das teorias, das ideologias, das instituições e das mentalidades, Religar às Origens, pelo expressivo cunho testemunhal de várias gerações e sua dimensão fervorosa, poética e apaixonada, traz um salto positivo ao pensamento, contribuindo para uma crítica qualificada e renovadora.


Ronaldo Cagiano

Escritor, poeta e crítico literário de São Paulo




Para adquirir o livro “Religar às Origens”
e clique no item Ciências Sociais e Humanas




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O PAU

pau-brasil em foto de Felipe Coelho Minha gente, não é de hoje que o dinheiro chama-se Pau, no Brasil. Você pergunta um preço e logo dizem dez paus. Cento e vinte mil paus. Dois milhões de paus! Estaríamos assim, senhor ministro, facilitando a dificuldade de que a nova moeda vai trazer. Nosso dinheiro sempre se traduziu em paus e, então, não custa nada oficializar o Pau. Nos cheques também: cento e oitenta e cinco mil e duzentos paus. Evidente que as mulheres vão logo reclamar desta solução machista (na opinião delas). Calma, meninas, falta o centavo. Poderíamos chamar o centavo de Seio. Você poderia fazer uma compra e fazer o cheque: duzentos e quarenta paus e sessenta e nove seios. Esta imagem povoa a imaginação erótica-maliciosa, não acha? Sessenta e nove seios bem redondinhos, você, meu chapa, não vê a hora de encher a mão! Isto tudo facilitaria muito a vida dos futuros ministros da economia quando daqui a alguns anos, inevitavelmente, terão que cortar dois zeros (podemos d

Trechos de Lavoura Arcaica

Raduan Nassar no relançamento do livro em 2005 Imagem: revista Usina             “Na modorra das tardes vadias da fazenda, era num sítio, lá no bosque, que eu escapava aos olhos apreensivos da família. Amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma, vergada ao peso de um botão vermelho. Não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor velando em silêncio e cheios de paciência o meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda?” (...)             “De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo. E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo. E, se eles er

O Visionário Murilo Mendes

Retrato de Murilo Mendes (1951) de Flávio de Carvalho Hoje completaram-se 38 anos de seu falecimento Murilo Mendes, uma das mais interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta difícil e, por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade desconcertante, sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Wolfgang Amadeus Mozart e ouvia suas músicas de joelhos, na mais completa ascese mística, não permitindo que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões. Certa vez, telegrafou para Adolph Hitler protestando em nome de Mozart contra o bombardeio em Salzburgo. Sua fixação contemplativa por janelas foi assunto do cronista Rubem Braga. Em 1910, presenciou a passagem do cometa Halley. Sete anos depois, fugiu do internato para assistir ao brilho de outro cometa: Nijinski, o bailarino. Em ambos os casos sentiu-se tocado pela poesia. “Na