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Sinuca, o jogo da vida




Um fenômeno que escapa ao intelectual da nossa sociedade





A sinuca sempre caminhou assim como um troço esquecido. Quando realmente ela representava a concentração de um tipo que fica muito próximo do marginal, que é o lumpen (de proletário, pobre, desprezível, etc.) a figura do marginalizado mesmo. Ela é uma coisa desconhecida, indecifrável e, quando aparece uma pessoa falando disso com propriedade é levada como pitoresco. Não é pitoresco. Um meio de divertimento, digamos assim: um lugar lúdico, e também um ganha-pão para outros homens que não têm meios para grande jogo, entende? As mesmas pessoas do salão de sinuca colocadas no Jóquei ou num cassino no Paraguai são uns pés-de-chinelo, uns caras que jogam bem pouco. São gajos que nunca sonharam com aplicações, Bolsas de Valores, eles nem sabem o que é Bolsa de Valores... são sujeitos não dados ao pôquer, o máximo que jogam é baralho, caixeta ou truco, é jogo de ronda ou esses joguinhos de 21 ou o joguinho do bicho.
Agora, a gravidade da sinuca está aí: nem o divertimento, nem o campo lúdico, esses sujeitos têm o direito do divertimento, porque até isso para eles é uma transação patética, é um palco dramático, é um xaveco do dia de amanhã, entende? O camarada quando está jogando 50 reais numa partida de sinuca ou 20 ou 10, ele está jogando é o dinheiro da xepa de amanhã, do ragu, do arroz com feijão básico. É a sobrevivência dele. Esse negócio ganha uma dimensão grande e isso passou desapercebido, até agora, pelo menos pela maioria dos escribas. E cada vez que um jornalista falava de sinuca, o sabido vai procurar uma pilha de subsídios, matérias entre coisas que já estão escritas em outros jornais, revistas, vai conversar com meia dúzia de malandros-chave, os medalhões da sinuca. São os gênios da sinuca realmente – Lincoln, Carne Frita, Estilingue, Boca Murcha e Praça. Essas personalidades no Rio de Janeiro e em São Paulo, esses homens que dão uma visão fantasiosa da sinuca porque daqui eles tiraram um statuzinho social, o de jogador de sinuca. Frita chegou a viajar para baixo e para cima com o dinheiro de sinuca.
Então, a modalidade é mais um fenômeno que escapa ao intelectual da nossa sociedade. Nosso intelectual está preocupado com outras coisas porque já encontra todo um processo pronto para só pensar nessas outras coisas.
Como figura simbólica de representação, parece muito com o futebol, a sinuca também é uma cópia da nossa sociedade, onde existe o patrão, o empregado, o barnabé, burro de carga, e o cavalo. Existe o sujeito que tem o dinheiro e não sabe jogar, que é o tipo que patrocina o jogo. Aparentemente, é um joguinho, mas se visto da angulação do malandro, um tipo romântico que sobreviveu até o final dos anos 70, daí a grandeza, se visto da angulação do malandro... ela é a própria síntese do patético da vida, da dramaticidade e da luta. Daí, os indivíduos dizem troços que me parecem, até hoje, meio piegas, melodramáticos: “A mesa é triste como uma bola branca que cai”.

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