Elogiada por Drummond em crônica no JB
Em Bagagem,
vemos a tentativa de recuperar antigos vínculos sociais, apagados com o advento
da modernização, e restabelecer antigas formas de se relacionar com a cidade e
a natureza. Há certo desejo de consertar e apagar as contradições e tensões da
sociedade. Neste primeiro livro da poeta mineira, há um desejo de construir uma
sociedade nova, movida pelas relações humanas, na qual a igualdade - diante de
Deus, diante do mundo – é incontestável. A matéria regional, a vida na província,
é repensada e transformada em saída libertadora – mesmo que cheia de
contradições – para uma sociedade comandada pelo progresso “tecno-ilógico”. Daí
a importância de repensar o tempo – e o progresso e questioná-lo. Por isso, o
romantismo de Adélia tem como lugar poético uma província idealizada. No
entanto, este mundo está prestes a ruir e só encontra sustentação no grande
desejo do eu-lírico de mantê-lo ainda vivo. Sua poética centra-se assim em
espaços privados – a casa, o quintal – que tem os espaços públicos – a rua, a
igreja, o cemitério – como extensão. Na tentativa de conciliar antagonismos
encontramos um mundo, marcadamente privado, em ruínas. Neste mundo, o cotidiano
oscila. Ele é tanto o retrato nostálgico do patriarcalismo apequenado quanto a
possibilidade política de mudança.
Há também, na poesia de Bagagem, uma problematização desse conformismo de fundo. Como
vimos, o despojamento da linguagem e mesmo das situações, a radicalização da
crença, a reestruturação do cotidiano, acabam também por subverter tanto o
discurso retrógrado da direita quanto o progresso imposto pela modernização em
curso. Se a conciliação é procedimento usual em sua poesia, vezes, como em “Dona Doida”, essa possibilidade é
dilacerada. O passado não retorna como utopia de um mundo possível. Dentro de Bagagem, o discurso romântico é
questionado, recolocado. Alguns poemas do livro são críticos em relação a
própria poética da autora. Daí as oscilações de sua poesia. Oscilações estas
que dão a ver um contexto histórico específico, feito de antigas promessas e
novas derrotas.
( MARQUEZ, Maira
Carmo. A Poesia de Bagagem, de Adélia Prado. Páginas 112 e 113. Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Teoria Literária e
Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo - USP - São Paulo, 2012. )
Dona Doida
Uma
vez, quando eu era menina, choveu grosso
com
trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando
se pôde abrir as janelas,
as
poças tremiam com os últimos pingos.
Minha
mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu
inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui
buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta
anos depois. Não encontrei minha mãe.
A
mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com
sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus
filhos me repudiaram envergonhados,
meu
marido ficou triste até a morte,
eu
fiquei doida no encalço.
Só
melhoro quando chove.
Com Licença Poética
Quando
nasci um anjo esbelto,
desses
que tocam trombeta, anunciou:
vai
carregar bandeira.
Cargo
muito pesado pra mulher,
esta
espécie ainda envergonhada.
Aceito
os subterfúgios que me cabem,
sem
precisar mentir.
Não
sou feia que não possa casar,
acho
o Rio de Janeiro uma beleza e
ora
sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas
o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro
linhagens, fundo reinos
—
dor não é amargura.
Minha
tristeza não tem pedigree,
já
a minha vontade de alegria,
sua
raiz vai ao meu mil avô.
Vai
ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher
é desdobrável. Eu sou.
Ensinamento
Minha
mãe achava estudo
a
coisa mais fina do mundo.
Não
é.
A
coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele
dia de noite, o pai fazendo serão,
ela
falou comigo:
"Coitado,
até essa hora no serviço pesado".
Arrumou
pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não
me falou em amor.
Essa
palavra de luxo.
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