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A Crônica do Mundo Esquecido







Casa Mário de Andrade na rua Lopes Chaves, 546, na Barra Funda, São Paulo










Suas narrativas leves e sincronizadas
parecem pinturas de cores vivas












            Raquel Naveira escreve regularmente crônicas para jornais e revistas, vindo a oscilar entre a prosa e a poesia do cotidiano, uma herança de Rubem Braga, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade e Fernando Sabino, jornalistas que conquistaram um lugar definitivo de nossa literatura exclusivamente como grandes mestres da crônica. Coincidentemente, Naveira aborda sempre assuntos do dia-a-dia, falando de si mesma, de sua infância, mocidade, impregnando tudo o que escreve de um grande amor à vida - a vida simples não sofisticada, dos humildes e sofredores.
            Ela tem predileção especial pelas coisas da natureza, tomando frequentemente como tema os animais, as aves, as flores, a arte manual das costureiras e bordadeiras, um hábito típico dos descendentes de portugueses. Não apenas as suas crônicas de amor e exaltação à mulher, quando valoriza a arte das costureiras, mas também as que dedicou aos judeus moradores de um bairro tradicional em São Paulo, a gatos, entre outros componentes da paisagem brejeira.

                “Veio imediatamente à minha memória a máquina de costura da minha avó. Era da marca Singer, de ferro batido, tampo de madeira brilhante, o pedal acionado pelo movimento dos pés. Eu gostava de abrir as gavetinhas e esmiuçá-las: os botões saltavam como estrelas, prateados, vermelhos, de madrepérola. Os carretéis de linha, a almofada com alfinetes de cabeça colorida, agulhas, fios de lã, lantejoulas, sianinhas, rendas, fitas, bordados, vidrilhos, miçangas, canutilhos, paetês. Um verdadeiro tesouro.
            Interessei-me desde cedo por tecidos. Conhecia pelo tato e pelo nome a seda, o tafetá, a cassa, a casemira, o tergal, a popeline, o voal, o fustão, a flanela, o gorgurão, o tule, o organdi. Andávamos eu e ela pela 14, a rua do comércio da minha cidade e íamos apalpando as peças que eram abertas sobre o balcão. Alisávamos, examinávamos o caimento, fazíamos comentários sobre as cores e as estampas. Na loja “Mil Artigos”, do libanês “seu” Fauze, comprávamos os aviamentos, pois o acabamento da roupa era uma parte importante e delicada do ofício. É pelo lado do avesso que se conhece uma boa costureira, explicava muito séria a minha avó. Em casa, eu desenhava os vestidos em cadernos grandes, detalhando os recortes, as pregas e os babados. Ela traçava o molde no papel cor-de-rosa com um giz redondo; esticava e prendia o papel com alfinetes no tecido; cortava-o com energia e tesoura afiada em golpes cirúrgicos e certeiros. E depois de muita emenda, ziguezague e esforço, lá ia eu ao baile do clube com o vestido que idealizara e vira nascer com tanta entrega, dedicação e amor, pelas mãos habilidosas de minha avó.”

(Costureira, 16.04.2014)




            “Nos supermercados e sacolões da região, vendem-se produtos kosher, como carne salgada sem sangue, selecionada, abatida e preparada de acordo com regras específicas. Os animais, por exemplo, não devem sentir dor na hora do sacrifício. Os comerciantes colocam faixas, enfeites e frases saudando as festas judaicas como o Yom Kippur, dia do Perdão; o Chanucá, Festival das Luzes e o Purim, Festival das Sortes. São celebrações de uma tradição de mais de cinco mil anos. As compras irão para a mesa judaica que é rica e de reforçados alicerces. Sobre ela as couves, as frutas, os vinhos, as hortaliças, as especiarias, as castanhas, os molhos, os peixes com escamas e o pão, sem fermento e do trigo mais fino e branco. Ao redor da mesa contam-se fatos notáveis ocorridos na vida do povo judeu; transmitem-se conhecimentos; dividem-se alegrias, tristezas, crenças e utopias. É o momento também dos questionamentos, das perguntas feitas para se renovar sempre o pacto de um laço que é ao mesmo tempo família, religião, filosofia, cultura e estado.”
(Bairro de Judeus, 16.05.2014)



        Raquel Naveira, contribui com a verve de pesquisadora e memorialista, pois resgata um universo clandestino e esquecido, injustamente rotulado de regionalismo pelos acadêmicos, modelando os perfis conforme uma pintora retratista: a firmeza nas decisões e no modo de expressar do homem do interior, mais precisamente da região centro-oeste do Brasil. O cheiro do orvalho no campo ao alvorecer, ao sugar na bomba o tereré quente na cuia, a erva-mate dos guaranis.
        Suas narrativas leves e sincronizadas parecem pinturas de cores vivas, ao recordar as noites de conversa nas varandas dos sítios e fazendas de Campo Grande, os sabores característicos do pão de torresmo, da broa de milho, das comidas fortes nas panelas de ferro, a brasa da lenha, no forno de barro, na área da cozinha, que aquecia nas noites de inverno, as fogueiras de São Pedro e São João, os velhos mitos e lendas do Mato Grosso do Sul, são as mais belas páginas de nossa literatura do século XXI.


            “- Lindo. Albatroz é uma palavra derivada do árabe “Al-gattãs”, ou “alcatraz”, um pelicano, um mergulhador. O meu poema “Pelicano” fala da aparição de um navio. Um dia vi um navio de perto. Eu, mineira, distante do mar. Olhei o navio por muito tempo. Eu amava o navio. Ah, que coisa é um navio! Eu dizia: - olha, olha o navio na massa das águas. É, eu vi o navio uma noite dessas, antes de me deitar, vi como um sentimento. Eu estava poetizada.
            - Adélia, parece que estou vendo o mar, o navio, o pelicano branco com uma mancha de sangue no peito. O pelicano se imola, se sacrifica, dá o próprio sangue aos filhotes famintos, sabia?
Ela consentiu com um aceno de cabeça, os olhos vagos e cinzentos.
Nisso minhas mãos esticaram em direção a uma mesinha de canto onde estava pousado um pequeno albatroz de louça branca.
            - Veja, comprei em Ponta Porã. Quando o vi na loja, lembrei-me imediatamente de Baudelaire e o trouxe como símbolo da dor e do prazer de me sentir poeta. É seu. Aceite. Um presente meu para você.
Ela segurou rapidamente o albatroz de louça e sorriu:
            - Dê-me logo, antes que você se arrependa - e o levou ao coração.
Já havia escurecido àquela hora e eu tive a sensação de que um navio atracou devagarinho no meu jardim.”
(Albatroz e Pelicano, 02.05.2014)






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