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Apagão













Vamos continuar sentindo uma comichão
ao olhar o “blecaute” na cordilheira











            Há momentos na vida em que o Homem (aí subentendido a Mulher também) deveria fazer um inventário de si mesmo – seus sonhos, suas desilusões, suas possibilidades e onde sente uma comichão na cabeça – e se faz perguntas. Vale a pena? Aproveito o “blecaute”, de algumas horas, e me olho dentro de minha casa interior, ao redor da cordilheira.
           Como você sabe, traço caminhos supondo um conhecimento, embora planeje há tanto tempo. Faço coisas como refestelar no sofá da sala criando um clima assim mais íntimo, mais acolhedor, mesmo do inevitável das palmas molhadas das mãos, e qualquer coisa como um leve tremor dentro de você.
            Era isso – esse gesto sincero, impulsivo que foge da rotina mecânica. Mas, você traz a memória de qualquer coisa macia que me alimenta nos dias solitários. Sobretudo à noite, aos domingos. Consegui um jeito de olhar por trás do muro de minha casa, vendo o que pouca gente vê. Atrás do meu quintal, retomo um momento submerso em mel e vinho, como sangue que Deus colocou inesperadamente, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há muito incapazes de ver concretizado um amor. Curvo a cabeça, agradecido. E abro as janelas, no meio de canteiros dentro de mim, posso traçar as retas e curvas, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então, por compartilhar com você estas revelações de epifania como joias encravadas no dia-a-dia. E, de repente, me sinto protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos se armavam de outro jeito, fazendo sentido.
          No campo magnético, a Ellen olha como um colo quente que é ter uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia metódico e banal atravancando o coração. Aqueles mesmos olhos que dizem “nada está pré-estabelecido, não temos compromisso com nenhuma forma de coerência, podemos ir inventando o nosso destino no caminho.” Mas vamos continuar sentindo uma comichão ao olhar o “blecaute” na cordilheira. Debater as causas do “apagão”, seja como uma estratégia para desacreditar o governo ou a falta de política energética e infraestrutura não é nenhum bicho de sete cabeças. O problema é que, às vezes, fica mais fácil eleger um vilão do que encarar todo o egoísmo, a mediocridade e a miséria que nos cerca.






(Esta crônica foi publicada no item “Prosa Contemporânea”
do portal Blocos online, de Leila Míccolis e Urhacy Faustino,
de Maricá, no Rio de Janeiro.)








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