Pular para o conteúdo principal

Sono Branco do Deserto




Deserto do Marrocos








“Tânger é um ancoradouro que retém as pessoas,
e um lugar intemporal: os dias se escoam mais despercebidos
 que a espuma de uma catarata.”

( Tânger, Truman Capote )


Ele ainda se sentia esvaziado: não era ninguém e estava ali
parado no meio de país nenhum.
O lugar era uma simulação, uma sala de espera entre destinos,
uma transição de um modo de ser para outro,
que no momento não era nem um nem outro, sem modos.
Os árabes trotavam por ali com seus sapatos europeus reabilitados
que impediam que andassem de maneira natural, se chocavam com ele,
olhavam para ele, tentavam falar com ele, mas ele não prestava atenção...
Ele disse a si mesmo que era como um prisioneiro
que tinha quebrado a primeira barra de sua cela, mas ainda estava dentro.”

( Que venha a tempestade, Paul Bowles )






O deserto é o escoadouro
dos olhos das almas,
mimese que povoa o branco
da página da vida,
sem sentido, sem perspectiva
para quem anda à procura de um nome.


O deserto desorienta a passagem,
para uma outra vida,
uma tênue esperança
dos mares de terra, dos mares do não-tempo
do abismo onde flutuam
um nome, uma letra efêmera.


O deserto tem olhos que nos espiam.
Apenas sentimos a sua presença misteriosa,
mística e inatingível, como a amplidão do céu
que se furta ao olhar.


A página em branco à espera de uma letra
que a redima.
A brisa do deserto move horizontes
em minhas veias.
No encontro do vasto oceano
com o deserto sem fim, em meio ao nada.


Granulagem de vogais
o enigma da madrugada
que ninguém controla o sonho
e o mistério, aquilo que o sustenta
nesta via sinistra.


O rosto perdido
no abismo poente, os seres deitam
as pálpebras pesadas
de sono branco,
voam aves negras nas beiradas da noite,
pois seu silêncio é anterior
e mais poderoso que a pedra.


Entrega-te como fazem os espíritos
no silêncio e fale sem palavras.
Busca purificar os teus espíritos.
É livre quando está fora de ti.
Nem será do Ocidente e nem do Oriente.
O teu lugar é sempre o não lugar,
porque não será a sombra de dois corpos
do mundo ser apenas Um, vence o Dois,
a ilusão, a esperança
desperte e guarde teu primeiro espasmo,
um jogo de claro-escuro, a incerteza, o medo
e a insegurança
solidão em comunhão com a dor
que sentira em terras tão áridas e desoladas.


Mil pássaros do silêncio,
dão asas ao coração magnético da palavra.
A palavra carnal, volúpia do verbo,
chama liberta da poesia,
companheira amada da matéria,
em tudo desimportante
amanhece como ensolarada.
Após a noite demasiado breve
coberta azul triste e solitária
do sono, a treva e o ocaso
desmorona dentro de si,
como se nada mais pudesse
permanecer de pé
os céus de Monte Castelo,
da Argélia, do Ceilão ao intangível em Tânger,
visagem dos olhos secos pela química do sol
nas areias escaldantes, as luas indormidas
e o silêncio da epifania da escrita.
As palavras correm quietas
e fazem sobressair um silêncio gráfico,
feito de letras.
Estão escritos os segredos do poeta
e de outros impensados mundos
para quem enxerga
uma paisagem aberta,
estonteante de átomos-enxame,
vertigem, sede espiritual e assombroso abandono
no eixo do ser, um ponto que não pode voltar
sangrando as veias criadas do tempo.









Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O PAU

pau-brasil em foto de Felipe Coelho Minha gente, não é de hoje que o dinheiro chama-se Pau, no Brasil. Você pergunta um preço e logo dizem dez paus. Cento e vinte mil paus. Dois milhões de paus! Estaríamos assim, senhor ministro, facilitando a dificuldade de que a nova moeda vai trazer. Nosso dinheiro sempre se traduziu em paus e, então, não custa nada oficializar o Pau. Nos cheques também: cento e oitenta e cinco mil e duzentos paus. Evidente que as mulheres vão logo reclamar desta solução machista (na opinião delas). Calma, meninas, falta o centavo. Poderíamos chamar o centavo de Seio. Você poderia fazer uma compra e fazer o cheque: duzentos e quarenta paus e sessenta e nove seios. Esta imagem povoa a imaginação erótica-maliciosa, não acha? Sessenta e nove seios bem redondinhos, você, meu chapa, não vê a hora de encher a mão! Isto tudo facilitaria muito a vida dos futuros ministros da economia quando daqui a alguns anos, inevitavelmente, terão que cortar dois zeros (podemos d

Trechos de Lavoura Arcaica

Raduan Nassar no relançamento do livro em 2005 Imagem: revista Usina             “Na modorra das tardes vadias da fazenda, era num sítio, lá no bosque, que eu escapava aos olhos apreensivos da família. Amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma, vergada ao peso de um botão vermelho. Não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor velando em silêncio e cheios de paciência o meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda?” (...)             “De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo. E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo. E, se eles er

O Visionário Murilo Mendes

Retrato de Murilo Mendes (1951) de Flávio de Carvalho Hoje completaram-se 38 anos de seu falecimento Murilo Mendes, uma das mais interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta difícil e, por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade desconcertante, sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Wolfgang Amadeus Mozart e ouvia suas músicas de joelhos, na mais completa ascese mística, não permitindo que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões. Certa vez, telegrafou para Adolph Hitler protestando em nome de Mozart contra o bombardeio em Salzburgo. Sua fixação contemplativa por janelas foi assunto do cronista Rubem Braga. Em 1910, presenciou a passagem do cometa Halley. Sete anos depois, fugiu do internato para assistir ao brilho de outro cometa: Nijinski, o bailarino. Em ambos os casos sentiu-se tocado pela poesia. “Na