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A Terra de Galerias




Ilustração de Inferno Canto V de William Blake









Parece-me que vozes se abrem
que lábios ansiam por águas
e mãos, mais brancas que os mortos,
se erguem aos céus de brumal
de pés esfolados e vão muito além,
das minas de sal e enxofre
e mulheres choram durante séculos
por seus filhos mortos, fazendo-os
não abandonarem esse lugar para sempre.


Essa terra que é uma dor ativa,
a qual uma parte da memória recorre,
quando um diálogo interior
como um ser amado – quer ele
esteja distante ou tenha passado
a outra margem de desafetos
ouvem a água pomba gemendo
na memória ao desgosto
rumorejo alto debruçado
nas profundas origens
sofrem a cada fase,
trazem em si a morte
em germe nupcial.


Na ilha de Ulisses
as gargantas entaladas e secas
ouvem ressonâncias efêmeras
olvido de plena noite estrelada
nervuras de rios lentos
no estrépito de margens lunares.


Muitos riem porque nas sílabas
se consomem ao redor
os sussurros de olmos
e vozes de águas trêmulas
antigas iludem a juventude
com brumas e cores
que a luz do sol resseca e desmorona.


Dos barrancos lúgubres
e desolados, nesta profundeza,
obscuro sortilégio da terra,
entre as tumbas de ruínas
ouvem a milenar voz da melancolia,
estrondando nos escombros
do medo e do silêncio.
Apavorados tentam subir os vértices
de aéreos precipícios,
onde cada dia aprofundam
alimentando secretas sílabas.
Outra luz te desfolham sobre os vidros
Mas não consegue lhe despirem
da veste noturna
e a alegria não descansa
em teus seios.


O exílio lhes colocam
a acre ânsia precoce de morrer,
hoje se faz palco para a tristeza,
tácito passo no escuro,
temor profundo lhes circundou
que infunde calor
no peso de uma vida,
perdida estrada
que seca os teus desejos.


E os olhos com traços e espirais
silabando as orações como um tema
de ficar ao amanhecer,
ressonâncias nos vórtices de pó,
sem as lanternas têm apenas
a luz dos vagalumes e da lua.


Outra vida lhes tomou: solitária
entre desconhecido, pouco pão
recebido, guarda toda forma
perdida nestas suas horas
de suspiros abandonos.


Um respirar distraído de narinas.
uma fadiga se solta
em fachos de precoces renascimentos,
em amplas quedas de ar.
A costumeira pena do seu ser
submersa nos seus corações.


Sem lembrança de morte,
floresce em teus flancos
feito ramo, a fauna
e a flora e as águas.
Sobre tuas matrizes
caminham anjos, mudos
subindo sem memória
e sem choro.
Larvas, a estranha mudança,
alastra uma memória de trevas
no fundo de galerias,
um vestígio de tímpanos sepultados
de quietude geométrica,
desespero de árida coisa.
Levanta-te de entre os mortos:
És um homem só
desenraizado dos vivos,
um só inferno, a tua luz naufragada.


Farejam lentamente lodo entre os espinhos.
Resta o luto de tuas vozes humilhadas.
Que ao menos gritem alguém no silêncio,
neste círculo branco de inumados.


Há muitas noites, ouvem-se as correntes
do rio em ligeiro vaivém,
pelas areias grossas
uns sinais rupestres, urnas de memória,
semelhantes a um murmúrio
de nascente, um sopro
de fumo maligno,
grito fulmíneo de vida.


Gélido mensageiro da noite,
ilumina os restos abandonados
um gongo sulfúreo,
trovão da terra fumegante
onde repousam os seus sonhos.


Solitários volvem para o norte,
onde cada coisa corre
sem luz para a morte.
Homens de nosso tempo
vocês são da pedra e da funda
com suas ciências exatas
dirigidas ao extermínio,
os seus túmulos afundam
nas cinzas os pássaros negros,
pois o vento, lhes cobrem o coração.


Nosso tempo é de fúria, de sangue
e sujo pela guerra de interesses
próprios, partiram com vocês,
e o trovão de eco em eco
nas tuas noites de terra.
E agora sabe a falta
de um mais forte apoio, pois tinham
as mãos e os olhos desfeitos,
e gritam por misericórdia e amor
pelo silêncio agora mais
tremendo que aquele que divide
a tua margem.
Nem uma árvore se move
de seu poço de raízes.


E você não floresce, não projeta
dias, nem sonhos que subam
do nosso além, não tens mais
os teus olhos infantis,
não tens mais as mãos leves
para procurar o rosto que te foge?
Resta emitir um grito
ao vazio ou no coração
absurdo que luta ainda
com o seu tempo abismo.


Do alto do céu amarelo
descer em ramagens
o trovão tétrico de uma infância
falsa, herança de sonhos
desconsolantes, à terra de dimensões
abstratas, onde cada coisa
é mais forte que o homem.


Já se grudam as gordas
moscas verdes aos nós das veias
neste mormaço repugnante
desde séculos a piedade é o urro
do assassinado nos pensamentos.
Apenas inércia e dor,
que a memória deixa
ao seu silêncio sem ironia,
misericórdia ou ira.










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