O mito de Narciso representa o excesso de vaidade
e egoísmo na sociedade atual
A dimensão não apenas
histórica mas metafísica da Grécia é projetada na poesia de Dora Ferreira da Silva, no livro Hídrias,
uma celebração ao ciclo das figuras femininas.
O mistério da deusa são faces dessa divindade una: Artêmis, Afrodite, Gaia. Via
de acesso a uma sacralidade arcaica, o poema
anuncia o futuro, a larga tarefa, para os humanos, da busca de um
ser-mais. Ártemis representa a luz solitária das alturas, o mundo selvagem,
não-humano, a combinação da ternura e da dureza, a
proteção aos animais e a leveza da dança. Ártemis, enquanto nutriz de múltiplos seres,
adorada em Éfeso, é uma variante da
“Grande Mãe” e seu poder.
A
divindade é una. Na pluralidade das suas manifestações, o feminino é vida
magnificada, vida abrangendo a totalidade de
suas possibilidades, “harmonia de
tensões opostas”, perpétua mutação e regeneração dos seres. A poesia de
Dora Ferreira da Silva celebra o feminino: Uma síntese entre a origem e o novo,
esse mistério, onde narra o mito ou um aspecto privilegiado deste. No sentido
figurativo, as hídrias são recipientes que contêm água, elemento sagrado de
pureza e de purificação por excelência, cada poema parece constituir-se no
receptáculo do elemento sagrado e vivificante que o próprio espírito da poesia numa época da morte de Deus, “tempo de carência” e de ausência do sagrado, rompendo com a religiosidade comum, pouco
comprometida, do homem contemporâneo. Sua poesia recusa também a expressão da
religiosidade massificada, emocionalista, superficial que encontramos nas
manifestações correntes e do misticismo de boutique.
Sua arte poética revive os mitos gregos, entre os quais, em “Órfica”, “Leto”, “Ártemis”,
“Apolo”, “Narciso”, “Hyacinthos”,
“Dionisos Dentrites”, “Posseidon”, “A Grande Mãe”, “Koré”, “Pérsefone”, “Hades” e “Hécate, como paisagem interior, plenitude de vida, luz e festa da
alteridade que nos habita. E sinaliza o surgimento de novos deuses no longo
poema “A Síbila”, onde Dora Ferreira
da Silva assume o papel de profetiza, que lamenta a ausência dos deuses antigos
e pressente os vindouros.
Órfica
Não me destruas, Poema,
enquanto ergo
a estrutura do teu corpo
e as lápides do mundo morto.
Não me lapides, pedras,
se entro na tumba do passado
ou na palavra-larva.
Não caias sobre mim, que te ergo,
ferindo cordas duras,
pedindo o não-perdido
do que se foi. E tento conformar-te
à forma do buscado.
Não me tentes, Palavra,
além do que serás
num horizonte de Vésperas.
Ártemis de Éfeso
A bela face parece negar o corpo informe
de múltiplos seios que
nutrem a multidão de seres:
leões e morcegos, pâmpanos e flores, uvas e
pinhas
adornam-lhe o pescoço. Semente longa
o talhe corpóreo, barco de nascimento e morte.
Por que temer, se as mãos se estendem,
doadoras,
não por amor de
um só, mas da procissão
das formas? Retraem-se os seios, quando à
morte entrega
e ao húmus, plantas, homens e feras.
Mãe luminosa, mãe sombria, mistério que tudo
abriga,
sê propicia ao trigo do meu canto.
Apolo Hiperbóreo
Ele ama a distância além do inverno,
onde não declinam a luz radiosa e os cantos.
Quando se afasta, pássaros silenciam e a fonte
em Delfos quase se extingue. Lobos uivam.
Imensa é a noite fria em sua ausência.
Mas ouve! O jubiloso peã de novo repercute
nas pedras brilhantes. Corpos e olivais
dourados
revivem na dança: o Citaredo retorna coroado
de folhas.
Narciso (I)
Lampeja o olhar que antes a toda a beleza
se esquivara. És tu, Narciso,
teu reflexo nas águas, ou a irmã
de gêmeo rosto e forma?
Não, não te afastas, porque a unidade
em duas se faria e o mundo das sombras ulula
à espera de tal luto. Permaneces inclinado
e adoras, sem saber se és tu, ou quem queres
ver
no exasperado amor que as águas refletem.
A Morte veio enfim buscar-te, consternada,
vendo os olhos do estranho amante
fixos na flor nascida de teu sonho.
Narciso (II)
Folhas incandescentes fizeram da fonte
vale de fulgores. Bebia Narciso sobre a onda
quando uma face viu de tal beleza
que a luz mais viva se tornou.
E Amor - cujas setas jamais puderam alcançar
seu coração esquivo — nele reinou e jamais do
jovem
se apartava, que a seu chamado as águas
acorria.
Insidiosa veio a Morte para o levar consigo,
deixando numa flor a forma de Narciso.
HÍDRIAS
Dora
Ferreira da Silva
Poemas
67 páginas
Odysseus Editora
2ª Edição
São Paulo
2005
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