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Ativismo e vida sexual clandestina



A ideia original partiu de conhecer o Brasil na qual está inserido. É um país desconhecido, ao qual não se dava a menor importância. Se existiam traços desta nação, não havia uma história sistematizada. Por pura solidão, uma sensação profunda de exílio, muito comum a muitos homossexuais e muita gente da comunidade LGBT, o escritor e jornalista João Silvério Trevisan embarcou na escritura do livro Devassos no Paraíso, uma viagem bastante complexa, também com atualizações que trabalhou por vários anos. Entre as atualizações se destaca todo o desdobramento da teoria queer, uma coisa imprescindível que aconteceu no século 21. E veio dar subsídios conceituais importantes à comunidade, especialmente na questão transgeneridade, que iluminou de uma maneira muito profunda e inovadora todo o relacionamento com os corpos pessoal e político, situado em uma sociedade. Acabou sendo uma resposta pessoal que a comunidade pode compartilhar.
O livro tem duas novas partes, em torno de 200 páginas acrescentadas nas atualizações, um elemento delas. Sintoma de como a comunidade LGBT tem tomado posicionamentos políticos de uma maneira incomparável a qualquer outro momento da história brasileira. Nota-se a comunidade tão politizada, mas não em um sentido partidário, porque essa é outra borra. Confunde-se politização com tomar partido. As aquisições novas estão dentro do livro. Nas notas, o escritor faz uma referência sobre usar “os travestis”. Falava-se “os travestis” (e não “as travestis”) porque as próprias se chamavam no masculino. Se mudasse estaria distorcendo a história da homossexualidade e do movimento LGBT no Brasil. Trevisan sabe que não pode contar a história de uma forma que a distorça. Se esta história foi equivocada, ou se inclusive teve laivos de preconceito, é importante que seja exibida, que a história desse preconceito esteja presente. Devassos no Paraíso, um testemunho disso.
O feminino de fato ocupou um espaço que lhe era devido, mas que não lhe era permitido. Entre homossexuais masculinos, o feminino sempre foi uma questão fundamental rejeitada. Nos anos 70 era frequente a ideia de que as bichinhas que desmunhecavam estavam fazendo um desfavor para a comunidade porque viveriam um estereótipo. A grande mudança hoje, inclusive com o trabalho fantástico das feministas, na luta e elaboração de conceitos à revelia do masculino, acaba entendendo um pouco mais do papel do feminino nas homossexualidades e nas várias identidades LGBTs. Houve um processo de compreensão complicadíssimo até chegar a esse ponto, mas agora, obviamente, o papel do feminino é super bem recebido e acolhido. A teoria queer propõe que drag queens e travestis são, em nossas sociedades, uma comprovação de que os gêneros são criações culturais. Elas estão o tempo todo fazendo variações de gênero em cima dessa obscuridade, dessas performances a que se refere a Judith Butler. Todas as questões de gênero se transformam em questões variáveis, sem nenhuma sedimentação.
No livro, o escritor cita dados contra a ideia de que o brasileiro é hipersexual e relatos de devassidão. E não tem nenhuma conclusão sobre a sexualidade brasileira, por acreditar que a mesma faz parte de um caráter brasileiro que Roger Bastide definiu em uma citação publicada na obra: “Para compreender o Brasil é preciso ser poeta”. As definições que existem em sociologia são muito difíceis de aplicar em um país como o Brasil, não porque ele seja especialmente bacana, mas porque é especialmente complicado, e especialmente indefinível. Cita também Drummond: “O Brasil é um ponto de ver e não de ser”, pois toda a identidade brasileira se mostra periclitante, e isso se aplica à vivência sexual. Somos um povo com um número espantoso, imenso de homens que vivem uma vida homossexual clandestina e que caracteriza bissexualidade. Mas muitos não se consideram bissexuais. São heterossexuais que fazem escondido sexo com homens. Eles fazem isso com um sentimento de culpa, ou criaram, inclusive, um formato de sexualidade que absorveu essa contradição. Os casos relatados por estrangeiros são a ponta do iceberg e se confrontaram com essa situação.
Hoje existem informações muito maiores que possibilitam fazer escolhas melhores, mas tem muita gente que prefere não escolher no Brasil. E isso ainda hoje é uma questão que perturba estrangeiros que vêm para cá. É uma vida sexual subterrânea, que talvez faça parte do jeitinho brasileiro. O livro traz relatos de estrangeiros que vieram ao Brasil e viveram aventuras sexuais e afetivas. O que eles revelam? Revelam uma coisa que nosso olhar não consegue ver. Muito frequentemente há um distanciamento mais abrangente do que o olhar de quem está de cara com a situação. Às vezes percebem coisas que nem nós (brasileiros) damos conta pela familiaridade do cotidiano, e que para eles são narrativas absolutamente novas e surpreendentes.


DEVASSOS NO PARAÍSO
A Homossexualidade no Brasil, da Colônia à Atualidade
João Silvério Trevisan
4ª edição, revista e ampliada
726 páginas
Editora Objetiva
2018


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